quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Do templo ao túnel

Fevereiro, primeiro dia do ano no Vietname. Apresento-me de manhã cedo nos escritórios da agência TheSinhTourist - um verdadeiro império turístico por estas paragens - pronta a dar uso ao meu pacote combinado de visita aos Túneis Cu Chi e ao Grande Templo Cao Dai. Ambos podem ser feitos num confortável dia de passeio a partir de Ho Chi Min.

A primeira surpresa do dia, ainda estacionados junto aos escritórios da agência, é uma nota de dez dong que o guia nos entrega, aconchegada num pequeno envelope vermelho. Trata-se do tradicional li xi ou tien mung tuoi, o dinheiro da sorte que é costume oferecer-se durante o Tet, em especial às crianças, como forma de começar bem o ano. Começar bem o ano, aliás, é uma das grandes preocupações das famílias nesta altura. Por isso se adornam casas, se saldam dívidas, se envergam roupas a estrear, se disseminam desejos bem intencionados entre familiares e amigos. Por isso, também, as famílias escolhem criteriosamente as primeiras pessoas que entrarão no seu lar. Tudo contribui, acreditam os vietnamitas, para influenciar a sua felicidade no ano vindouro.

Com os meus dez dong no bolso, desejosa de (pela segunda vez) começar o ano da melhor maneira, rumo com o guia e demais companheiros de tour em direcção a uma oficina de pintura lacada, onde fazemos uma paragem breve para descobrirmos esta arte tradicional do Vietname e sermos tentados a comprar toda a sorte de objectos decorativos que se empilham em carreiras infindáveis num armazém de proporções faraónicas. O truque é conhecido e amplamente usado por aqui: nos tours vendidos por muitas agências, as pausas para petiscar e usar a casa de banho fazem-se por norma nestas lojas + cafetaria + casa de banho, nas quais, para se servirem das duas segundas valências, os turistas têm necessariamente de atravessar longas salas dedicadas à primeira. A pausa, em vez dos dez minutos que seriam necessários, dura vinte ou meia hora. Mas, verdade seja dita, ninguém obriga ninguém a nada. O tempo livre pode perfeitamente ser passado a deambular pelo espaço, sem uma única vez puxar da carteira.

É o que faço, passando em revista a oficina, com as suas mesas repletas de copos com lacre, tintas e cascas de ovo quebradas com que, em dias de trabalho, atarefados artesãos compõem diferentes padrões, dos mais geométricos aos mais figurativos.

Na oficina de pintura lacada
Cascas de ovo são um dos principais "ingredientes"
nesta técnica decorativa

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Observada a pausa da praxe, estamos prontos a dar início ao primeiro segmento do tour propriamente dito. Seguimos, pois, para o Templo Cao Dai, um enorme complexo para o qual parecem dirigir-se todos os passos das redondezas. Explica o guia: o Caodaísmo é uma religião sincrética fundada em 1926 na província de Tay Ninh, no sul do Vietname, com o objectivo de reunir toda a humanidade em torno de uma visão comum do Ser Supremo, evitando a discórdia e promovendo a boa-vontade e a paz entre os Homens. O Caodaísmo acredita que todas as religiões são caminhos diferentes voltados para um mesmo Deus e por isso procurou incorporar no seu culto os princípios de várias religiões pré-existentes. Cao Dai, expressão que designa o Ser Supremo e que se encontra traduzida noutras línguas através de expressões como "Torre Alta", "Palácio Alto" ou "Morada Alta", pretende justamente transmitir uma ideia de neutralidade na definição do Ser Supremo. O seu principal centro religioso, o Grande Templo ou Santa Sé Cao Dai, foi construído entre 1933 e 1955 na cidade de Tay Ninh, capital da província homónima e situada a cerca de cem quilómetros Ho Chi Minh.

É onde estamos hoje. Enquanto nos aproximamos da entrada, para uma visita em que o ponto alto será assistir a parte de uma das cerimónias religiosas do dia, o guia garante-nos que as fotografias são perfeitamente toleradas. E fotografar é exactamente o que apetece fazer, uma vez penetrado o coração deste recinto arquitectónica e cromaticamente peculiar.

A toda a volta a sala vibra de amarelos, azuis e rosas pujantes; dragões abraçam colunas alinhadas em corredor de uma ponta à outra da sala; no tecto um perfeito rebanho de nuvens saltita entre estrelas brilhantes; as janelas são adornadas por flores e feixes que convergem num centro comum -- o olho esquerdo, mais próximo do coração, que representa o Ser Supremo; no altar principal agiganta-se uma órbita terrestre com o olho divino desenhado e, na parede por cima, há estatuetas de Jesus Cristo, Buda, Confúcio e Lao Tsé; num pequeno átrio já fora da sala principal há um mural ilustrando três dos vários santos desta religião, escrevendo: Sun-Yat-Sen, Trang Trinh e Victor Hugo (sim, o escritor francês!), este último compondo as palavras "Deus e Humanidade, Amor e Justiça".

À nossa volta agita-se um mar de túnicas brancas, cor das vestes utilizadas pelos seguidores desta religião. Só aos padres estão reservadas as vestes amarelas (simbolizando o budismo), vermelhas (o confucionismo) e azuis (o taoismo). As mesmas cores estão representadas na bandeira do Caodaísmo, juntamente com o olho esquerdo.

Enquanto os visitantes se vão reunindo em duas varandas compridas, com acesso a partir do primeiro andar e vista desafogada sobre a sala que compõe a área principal do templo, lá em baixo iniciam-se os preparativos para a cerimónia. Como se da preparação de uma parada militar se tratasse, alguns dos fieis vestidos de branco organizam os restantes em grupos e depois em fileiras, assegurando-se de que os espaços entre uns e outros são idênticos e que cada um está no seu devido lugar.

Por fim a cerimónia tem início, com a entrada dos monges num arco-íris em linha recta. Seguem-se música, cânticos, vénias e ritos incompreensíveis para forasteiros como nós, mas por isso mesmo tanto mais fascinantes. Entre o público aninhado nos varandins, disparam-se máquinas e murmura-se.

Altar principal, com a órbita, o olho divino e as
estatuetas de Buda, Confúcio, Lao Tsé e Cristo

Fiéis em oração
Entrada dos padres
Cerimónia no Templo Cao Dai
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Avanço com esforço, ligeiramente ansiosa e profusamente suada. O espaço reduzido, o ar rarefeito e a luz velada reforçam em mim uns quaisquer laivos de claustrofobia que até hoje nunca desconfiara possuir. Neste preciso momento, o meu maior desejo é regressar à posição vertical e açambarcar umas boas golfadas de ar fresco para benefício exclusivo dos meus pulmões. Por fim, depois de mais uns avanços de cócoras, o desejo é-me concedido. Regressamos à superfície.

Estamos no distrito de Cu Chi, a noroeste de Ho Chi Minh, e aqui é debaixo do solo que o relato da história do Vietname prossegue. Agachada, acabei de percorrer uma ínfima porção da extensa rede de túneis subterrâneos que as forças do Viet Cong utilizaram para combater as tropas americanas e sul-vietnamitas, compensando em inventividade o que lhes faltava em equipamento. O início das escavações remonta ainda aos tempos da Primeira Guerra da Indochina, contra os franceses, altura em que os túneis começaram a ser construídos como forma segura de viajar entre aldeias e de armazenar mantimentos e munições. Mas foi mais tarde, contra os americanos, que os túneis Cu Chi vieram a ganhar a sua expressão máxima. O trabalho prosseguiu muitas vezes com as próprias mãos de quem os escavava e a rede alcançou um comprimento impressionante, acima dos 200 km, e três níveis de profundidade, vários metros abaixo do solo. Os túneis funcionavam como entreposto militar para as guerrilhas, permitindo efectuar ataques surpresa e fugas rápidas. Mas em altura de ataques aéreos intensos neles vieram a albergar-se aldeias inteiras, incluindo hospitais, zonas de habitação, fábricas, entre outros espaços necessários à vida do dia-a-dia.

Por muito claustrofóbica que tenha sido a minha curta viagem no seu interior, não se compara com o que terá sido a realidade de quem aqui viveu há umas décadas: os túneis que acabámos de percorrer foram entretanto alargados e iluminados para receberem turistas como eu. Na época em que estiveram activos, só rastejando de barriga no chão, tacteando no escuro no meio da lama e bicharada vária, poderíamos ter feito este trajecto.

Reconhecendo a sua importância estratégica, várias tentativas foram feitas de destruir os túneis ou de decifrar a sua estrutura interna, nomeadamente através de bombardeamentos e de oficiais conhecidos como "ratos de túnel", que se introduziam na rede subterrânea em busca de informação sobre a sua dimensão e sobre o modo como era utilizada. Era uma operação bastante delicada, uma vez que os túneis se encontravam pesadamente armadilhados.

Após a guerra, o Governo vietnamita decidiu preservar os túneis no âmbito de um parque dedicado à memória da guerra, que é hoje uma importante atracção turística da zona.

O guia conduz-nos pelo recinto, revelando-nos toda uma vida invisível ao observador medianamente desatento: as exíguas e dissimuladas entradas para os túneis; o sistema de armadilhas ocultas em alçapões, onde, uma vez caídos, os soldados americanos sofriam mutilações horríveis e, por vezes, a morte; ou os respiradouros em forma de formigueiro cuja função era deixar entrar ar para os túneis e, simultaneamente, escoar fumos gerados com a preparação de alimentos. Aqui e ali, objectos preservados e esculturas em tamanho real ilustram cenas da vida de todos os dias nos túneis.

Antes de deixarmos o parque, somos informados que existe ainda a possibilidade de uma passagem por um campo de tiro, onde, mediante pagamento adicional, poderemos disparar armas de diferentes modelos, como as AK-47, por exemplo. Ouvi falar de um visitante que gastou cem dólares para o fazer, ao preço médio de um dólar por bala. Para mim, é demasiado disparo junto e, depois de visitar os túneis e conhecer a sua história, seguramente a última coisa que me apetece fazer.

O que o Templo Cao Dai tem de hino à capacidade humana de comunhão e entendimento os Túneis Cu Chi têm de recordação do lado mais negro da história humana e dos horrores da guerra. Mas à sua maneira, são, também, um exemplo de engenho e resistência em condições muito adversas. Como tantas outras nesta região do mundo, esta não é uma visita da qual se saia ileso ou indiferente, pelo menos para quem tentar fazer dentro de si o esforço de viajar no tempo, imaginando quão diferente a sua vida teria sido naqueles túneis.

Uma entrada, habitualmente dissimulada, para os túneis
Armadilhas simples mas eficazes