As águas agitam-se levemente, enquanto o ferry trilha os metros finais até ao terminal. Um alinhamento perfeito de prédios esticando-se em direcção ao céu observa a nossa chegada, qual parada militar orgulhosa, exibindo os seus uniformes e galões à multidão de barcos. Por enquanto, Hong Kong permanece assim, uma figura de estilo na minha mente, demasiado abstracta para lhe poder chamar real.
Mas assim que desembarco e passo a fronteira, entrando de pleno na confusão húmida da cidade, a fileira de prédios desbanda e desmultiplica-se em milhares de cruzamentos incomprensíveis, ruas inesperadamente sobrepostas e caminhos cuja direccão seguinte é impossível de adivinhar.
Temos uma antipatia estranha, Hong Kong e eu, mas deixo-me serenar pela certeza de que no meio deste aglomerado ainda anónimo haverá, como há sempre, qualquer coisa que eu possa amar. De qualquer modo, confirmo olhando o mapa, pelo menos não estou perdida: consegui chegar ao bairro certo, o que é uma proeza muito pequena, na verdade, dada a sua proximidade da zona onde atraca o ferry Macau - Hong Kong.
As combinacões que tenho para estes quatro dias implicam que hoje tenho a tarde inteira por minha conta e que só ao fim do dia poderei fazer check in no alojamento escolhido. Assim, e porque são horas de almoço, a prioridade torna-se rapidamente descobrir uma porta de onde se entreveja muita gente e uma ementa barata - os dois critérios que me têm guiado, em primeira linha, na minha incursão pela culinária chinesa.
Aterro na rua certa, à hora exacta. O restaurante desejado rapidamente se apresenta, com a sua sala grande cheia de mesas e cadeiras uniformes, partilhadas em igual medida por amigos e desconhecidos, que comem, por vezes com olhar perdido no fundo da taça, os seus noodles, arrozes e quejandos.
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Congee de peixe |
Sento-me - ou melhor, sou sentada - ao lado de um rapaz que come uma espécie de sopa espessa e branca e em frente a uma senhora idosa que cedo termina o repasto. Felizmente por aqui há uma ementa em inglês e, sentindo-me encorajada por este facto, decido pedir congee de peixe. Segundo me explica a empregada, o congee é uma espécie de porridge e, constato eu, a tal mistela branca que o meu amigo do lado acabou de engolir. A que sabe o congee, perguntam vocês? A muito pouco, para ser franca. Sabe a arroz aturadamente cozido até ficar papa com alguns grumos e, lá pelo meio dessa papa, encontrei vestígios do dito peixe, sob a forma de fatias fininhas e sem paladar assinalável. Em suma, ocorreu-me, é exactamente o prato que uma pessoa quer ver na ementa naqueles dias em que a barriga não está pelo melhor.
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Bun ao vapor, com recheio de sementes de lótus |
Depois do congee, que apesar de pouco saboroso era, pelo menos, aconchegante e muito barato - menos de dois euros! -, ficou-me o proverbial espaço na covinha do dente. Voltei a ter sorte. Uma esquina depois, na sugestivamente chamada Possession Sreet, avisto a mais apetecível banquinha de rua das muitas que tenho visto por aqui - ou pelo menos foi isso que me disse o tal buraco na covinha do meu dente. Por aqui vendiam-se uma espécie de dumplings fritos, em variante de carne e de vegetais, e depois uns buns ao vapor, com recheios vários, doces e sagados. Destes últimos, e sem nenhuma ideia do que era, escolhi o de sementes de lótus. E ainda bem que assim foi, porque era muito bom, levemente adocicado e bastante macio, tanto no recheio como na camada exterior.
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Glutinous rice com mirtilhos |
Contente com a minha descoberta, nem meia dúzia de passos tinha dado quando uma padaria na mesma rua me voltou a ficar na menina dos olhos. Lá se anunciavam, na montra, uns bolinhos de glutinous rice com fruta. Os meus favoritos, de mirtilho, tinham acabado, de modo que prometi a mim mesma que voltaria pela hora do lanche.
No entretanto, atirei-me à "grande deambulação", que é aquele passeio meio à deriva que eu sempre gosto de dar quando chego a uma nova cidade. Saltito entre ruas de antiquários e ruas de venda de comidas secas, passo pelo Fringe Club e pelo Foreigner Correspondents Club, vejo templos e igrejas, cruzo entradas de restaurantes oferecedo comidas do mundo inteiro, desde a tasca ao bistrô mais exclusivo, constato, de uma penada, a mistura de coisas que é Hong Kong. Como revela as suas raízes anglófonas, nas ruas e em quem por elas passeia, tornando-se depois inegavelmente chinesa nas ruelas e becos enviesados, para logo mudar para a sua veste mais cosmopolita, mais adiante em Hollywood Road e na zona de Soho. O tema da cidade parece ser a sua variação constante e a impossibilidade de a associar a um único rótulo simples de enunciar. Nunca, na demais China, vi tal diversidade de caras e de propósitos. O que não surpeende. Hong Kong, suspeito eu, pertence a uma classe de sítios inteiramente à parte, junto com Nova Iorque e outras cidades cuja singular e inigualável mistura define a essência do que são.
Andar pela cidade cansa, talvez mais do que em qualquer outra cidade até aqui. O meu pescoço ressente-se do peso de suportar a minha cabeça constantemente voltada para o céu, os meus pulmões fraquejam sob a pressão viscosa da humidade e todo o meu sistema, atacado pela multitude mais do que pela multidão, anseia pela calma dos últimos dias em Macau ou, talvez mesmo, da minha temporada no sul da China continental.
Mas como o peixe, morro pela boca, pois se por mais nada, sinto que Hong Kong já me conquistou pelo estômago. Impossível não apreciar uma cidade que o faz, à primeira tentativa.
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Hong Kong vista de cima... |
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... vista de baixo... |
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... e vista de longe! |