Com um agradecimento à I., guia fantástica, anfitriã inexcedível e minha amiga do coração
Saio para a rua com emoção desmesurada. À minha volta ribombam as luzes dos grandes casinos e os edifícios erguem-se megalómanos, numa profusão de dourados e de promessas de uma outra vida onde o dinheiro está à distância de uma carta voltada ou do girar de uma roleta.
Mas se no meio destas ruas muralhadas de fortuna me bate mais forte o coração ou me assoma aos olhos, discreta, alguma lágrima, não é pela superfície de nada disto. A razão está escondida algures nas paredes transformadas de um edifício, o Hotel Lisboa, onde há muitos anos atrás uma versão mais diminuta de mim passou horas felizes a jogar em arcades e carrinhos de choque. Uma feira popular dentro de um prédio, é o que recorda o meu imaginário infantil, hoje como ontem com a mesma surpresa maravilhada.
Nos últimos anos o casino acoplado ao hotel cresceu e engoliu a velha sala de jogos electrónicos, que passou a uma simples memória no sucessivo construir e reconstruir da cidade. Foi dessa memória que vim hoje à procura, ansiosa por colocar sobre a mesa uma das inúmeras peças do meu puzzle pessoal.
Desses tempos, não me lembro de muito. Tinha quatro anos, e depois cinco, durante os meses em que vivi em Macau com o meu pai, na altura em que o território se encontrava ainda sob administração portuguesa. Por isso, talvez seja surpreendente que me importe tanto com o reconstituir desse passado ténue, mas importo-me.
E não, não só pela comum nostalgia de recordar a infância, mas disso só me dou conta ao fim dos primeiros dois dias. Em muitas coisas estou a conhecer Macau pela primeira vez, é verdade, mas para além disso, e para além daquilo que possa ainda restar na minha mente da primeira vez que aqui estive, há outra coisa mais antiga e, talvez possa dizê-lo, muito mais significativa. Quando testemunho a influência portuguesa na arquitectura da cidade, na sua comida, na língua escrita, nos seus habitantes e até turistas, quando penetro, pelas mãos da minha grande amiga e anfitriã I., nas rotinas e rituais da comunidade lusa que por aqui ainda se encontra, observando como se reúne em torno de hábitos, gostos e celebrações partilhadas, nada disso me sabe a uma primeira vez. Nesses momentos, é como se eu fosse, mais do que eu, o ponto presente na linha de uma família que ao longo da sua história correu continentes distantes e neles teve de construir para si um lar. Paticipando no presente, é também numa parcela desse passado que participo - o dos meus pais, avós, bisavós, trisavós e assim por diante.
Caminho pela cidade mergulhada nesta noção muito clara de pertença e num qualquer outro sentimento mais difuso e inexprimível. Será a sensação do círculo que se fecha? Do círculo que através de mim tem a possibilidade de se perpetuar? Não sei dizer.
O que se herdou de Portugal espreita por toda a parte. No Largo do Lilau, completo com banquinhos, fonte e quiosque, no Largo do Senado, com a sua Santa Casa da Misericórdia e a sua Pharmácia Popular, nas incontáveis igrejas, no teatro D. Pedro V, nos canhões da Fortaleza do Monte, no branco e amarelo do farol da Guia, nas ondas hipnóticas da calçada branca e preta, nos halls renovados mas ainda sugestivos do Clube Militar, nos nomes de tantas escolas, ruas e becos, nas placas e menus dos restaurantes, desde o Ou Mun à Caravela, ao Afonso III e à Vencedora, nas estátuas como a de Jorge Álvares e a de Camões, nas histórias que recorda o Museu de Macau, nos pratos de arroz de bacalhau e na centena de coisas que aqui não enunciei.
Em tudo isto está Portugal, sim, mas a cara bem distinta da Ásia nunca anda longe de assomar novamente à superfície. Vira-se a esquina e da igreja passou-se ao templo, do arroz de bacalhau ao chow mein e da arquitectura clássica ao mercado agitado, crescendo de forma orgânica com cada curva da rua.
Como os dias me vão mostrando, na barriga do grande caldeirão dos séculos que correm foram-se fundindo em Macau a história portuguesa, a história chinesa e outras histórias que em maior ou menor medida aqui deixaram a sua marca, cessando de ser unidades isoladas e estanques para darem lugar a algo de único. Nesta terra de dimensões reduzidas cabem as influências mais díspares, mas ao contrário do que se poderia supor, nenhuma delas verdadeiramente se contradiz. O todo harmónico resulta, justamente, da confluência das várias diferenças e, ao contrário do que sucede noutros lugares, cada elemento não sobressai como num aglomerado, antes se articula e enquadra como numa identidade. É nisso, e por isso, que Macau se torna Macau.
Para mim, porém, é difícil o olhar descomprometido, objectivo. É difícil não ir à procura de uma centelha de reconhecimento ou de conexão. A visita a estas paragens ficou irremediavelmente moldada ao feitio das minhas origens, memórias e expectativas. Talvez por isso, deixarei que sejam as imagens, e não as palavras, a contarem-vos o resto desta história.