segunda-feira, 21 de abril de 2014

Hanoi ou a arte de atravessar a estrada - parte III

Na Faculdade tinha um assistente que costumava inquietar-nos com o seguinte dilema existencial: porque é que a galinha atravessa a estrada? Se bem me recordo a resposta era algo como: para chegar ao outro lado. Suponho que fosse reconfortante esta visão do mundo aviário, o saber que pelo menos aí - já que no mundo dos Homens não era possível - os indivíduos se comportavam de forma perfeitamente lógica e expectável.

Recordo-me disto não por saudosismo súbito, mas por contraste. É que nos países do Sudeste Asiático, ao contrário do que sucede no mundo filosófico das galinhas do meu professor, atravessar a estrada e chegar ao outro lado não são necessariamente duas metades da mesma equação. Na verdade, a primeira vez que tenta atravessar a estrada uma pessoa ensaia dois passos cautelosos e regressa logo de corrida para a berma, espavorida e certa de que no outro lado não pode haver nada de tão interessante que justifique arriscar a própria vida.

Nesta zona do mundo, Hanoi certamente não detém o exclusivo de cidade com trânsito louco e caótico, mas é bem possível que seja o expoente máximo da categoria. Entrar na cidade velha, em particular, é arriscar pêlo e cabelo por ruas estreitas onde um mar de motorizadas se convulsiona, cada qual lutando por espaço e passagem milímetro a milímetro.

Porém, qualquer pessoa que já tenha estado no meio da tormenta sabe que, ao invés do que possa parecer, há uma harmonia perfeitamente arquitectada no coração do desatino. O mais importante é que ninguém perca a paciência e que cada peça - motas, carros, tuk tuks e peões - cumpra a sua função da forma esperada. 

As regras são não escritas mas nem por isso menos cruciais. Nunca recuar e nunca olhar para trás. Tanto quanto possível, manter contacto visual com quem se aproxima movido a motor. E quanto mais confiante for esse olhar melhor. Isto não apenas para garantir que nos estão a ver, mas também para lançar aquela mensagem subliminar de "agora passo eu". E por último, nunca, mas nunca, assumir que só porque está vermelho para eles os carros e motas vão parar ou que o sentido correcto da marcha é o único utilizado.

Uma confissão. A primeira vez que tive de atravessar uma estrada algo caótica nesta viagem foi na China e o que fiz foi acobardar-me, dar uma corridinha atarantada e colar-me de mansinho a um grupo relativamente composto que estava a atravessar também. Não foi um começo de leão, talvez, mas a verdade é que uns meses depois, pela altura em que cheguei a Hanoi, já não me pertubava minimamente a ideia de me lançar para o meio dos cruzamentos e, como numa valsa mecânica, oscilar da direita para a esquerda enquanto avançava de um passeio ao outro por entre um baile inteiro de lata e motores ronronantes.

sábado, 19 de abril de 2014

Hanoi ou a arte de atravessar a estrada - parte II

Beleza e mistério no lago Hoan Kiem
Hanoi da cidade velha, tipicamente asiática, frenética, densa de cheiro, cor e movimento. Hanoi de toque francês, atravessada por avenidas arborizadas, lagos, arquitectura de charme e um gosto pelo requinte. Hanoi das avenidas amplas, vazias, geométricas, monumentais, herança que o comunismo deixou à arquitectura local. Hanoi do lago Hoan Kiem, cinzento numa manhã de nevoeiro, a soltar a imaginação. Hanoi moderna, das grandes marcas, lojas e nomes internacionais.

Onde está, em Hanoi, o coração pulsante? Difícil dizer. No seu todo amalgamado, nenhuma das partes parece dispensável sem perda de uma virtude essencial, sem perda de algo que empresta à cidade o seu encanto particular.

*

Na noite da minha chegada não me apetecem grandes esforços. É por isso que, fiada nas indicações do hostel, abro caminho rápido por entre as ruas apinhadas da cidade velha, em busca daquelas que a simpática recepcionista assinalou com um círculo no mapa.

Não preciso de caminhar muito. Umas ruas abaixo, mesmo à esquina, vejo um mar de mesas e cadeiras baixas cheio de gente em alegre banzé, aquele banzé particular que se eleva acima do ruído geral que sempre paira nas ruas da Ásia e que indica a proximidade de comensais felizes atacando pratos e bebidas com gosto.

Delícias do mercado nocturno
Olho em volta, meio desorientada, e lá vem o empregado sorridente trazer-me o menu inglês e apontar-me um lugarzinho acanhado numa das mesas corridas. Com cada passo para lá chegar, as minhas botas esmigalham ossos e outros restos inaproveitáveis que das mesas foram lançados directamente para o chão, sem pudor particular. Sento-me e peço um pho - essa sopa que é uma instituição sem par no Vietname - mas sem carne.

A meio caminho em direcção ao fundo da tigela, já estou em amena cavaqueira com uma rapariga obviamente estrangeira e de cabelo decididamente escuro, sentada do outro lado da mesa. Diz-me que é americana, estudante de jornalismo, e que está aqui "working on a story". Respondo-lhe que em todas as minhas viagens nunca tinha encontrado uma jornalista em missão. Não sei porquê, se é do ar da noite ou das memórias dos muitos filmes de acção e mistério passados na Ásia, mas sinto-me subitamente fiel depositária de uma informação vital e, claro está, secreta. Working on a story. A minha mente voa. 

Terminamos o jantar com a descoberta de que ela reside numa das cidades por onde eu conto passar daqui a uns meses. Simpaticamente, deixa-me o contacto escrito num guardanapo, para o caso de me poder ajudar nalguma coisa. Depois despede-se e eu fico a rapar o fundo da tigela, devolvida ao mar anónimo de gente. Ao vê-la partir, sinto-me tentada a espreitar o outro lado do guardanapo, quase esperando encontrar aí as fatais palavras "queimar depois de ler".


*

Deambulando pelos jardins do Templo
da Literatura
Começo o seightseeing no Templo da Literatura. À entrada, uma placa assegura-me ter sido aquela a primeira universidade do país. Um jardim adorável envolve as estruturas de influência claramente chinesa - ou não estivesse a história do Vietname tão estreitamente ligada com a da China - e encaminha o visitante para um passeio silencioso por entre árvores, lagos e recantos ajardinados. Agrupadas aqui e ali, estelas acumulam nomes dos ilustres formados neste estabelecimento de ensino. Uma placa alerta para as carapaças de tartaruga esculpidas na base das estelas, recordando que as tartarugas gozam uma vida longa e saudável e são um dos animais sagrados no país, a par dos dragões, unicórnios e fénixes.

Estelas doutorais
No Museu das Artes passo em revista um conjunto apreciável de quadros, pinturas em seda, esculturas. Como não podia deixar de ser num país em que a luta entre ideologias deixou marcas tão profundas, há em muitas destas obras uma linha ténue entre arte e política. As salas são múltiplas e o acervo mais rico do que eu pensara, documentando bem a história do país e a evolução do sentir e da mestria dos artista vietnamitas ao longo do tempo.

No Museu das Mulheres, recentemente renovado, aprendo sobre as contribuições importantes das mulheres vietnamitas para a história e sociedade do seu país. Numa das salas mais pequenas passa um documentário sobre mulheres que, para escaparem à miséria, deixaram as suas terras-natais por trabalho a vender legumes, fruta, flores e outros artigos ruas das cidades. Descortina-se toda uma vida de dureza naqueles olhares, uma dureza que muitas vezes está já para lá das lágrimas.

Arte e história no Museu das Artes
Uma sala maior documenta os rituais típicos de cada grupo étnico no que respeita à vida familiar. Espantosos, alguns dos complexos cerimoniais de casamento seguidos, com regras estritas sobre a interacção entre as famílias dos noivos, as prendas a serem trocadas, o número de vezes que o casamento deve ser celebrado e até o local onde os noivos devem habitar ao longo do tempo. Noutra sala mais adiante, conta-se a história das guerras e o papel das mulheres em tempo de conflito. Um placard informa que, a dada altura, cerca de 60% das guerrilhas Vietcong eram compostas por mulheres. Venho a mastigar este facto no caminho de regresso, ordenando mentalmente ao céu cinzento que segure os seus pingos de chuva mais uma meia hora.

*

O convidativo expositor do restaurante
Vu Canu
Paro junto a um expositor, atraída por baguetes, vegetais e fatias fininhas de qualquer coisa prensada que temo ser carne. Durante uns segundos fico ali a contemplar a ementa como se pudesse lê-la, aparentemente invisível para as empregadas que se atarefam lá dentro.

Nisto oiço um inglês perfeito chamar por mim:

- São excelentes, devia experimentar!

Olho para o fundo da sala aberta para a rua e vejo três estrangeiros, um casal talvez ligeiramente para lá da meia idade e um rapaz novo,  numa mesa baixa, sentados frente a chávenas de café aquecidas pela chama de uma vela.

A conversa desponta e convidam-me a sentar. Revelam-me que não, não são pais e filho, apenas turistas que se conheceram ao fazerem couchsurfing na mesma casa, e que haviam decidido dar um passeio juntos. Eu conto-lhes a minha história de viagem, que por esta altura já rola rápida e familiar como uma canção preferida.

O senhor, que sabe um pouco de vietnamita, pede-me uma banh mi de peixe. A banh mi é, na essência, a versão gastronómica da história da história do Vietname: uma sandes que combina ingredientes franceses - como as baguetes e o paté - com elementos típicos da cozinha vietnamita - coentros, molho de peixe e vegetais vários. A versão típica é recheada com carnes frias, mas também aqui, sinal dos tempos, já se fazem concessões aos vegetarianos e psicívoros deste mundo.

Podia dizer-vos a delícia que é trincar aquela crosta de pão estaladiça e sentir o fresco do pepino, o quente do picante, o peixe de sabor peculiar e tudo o mais de fantástico e estranho que se enconde numa baguete a la vietnamita. Podia dizer-vos, é verdade, mas há experiências que só tidas em primeira mão.

E depois, inebriada, não resisto. Venha mais uma chávena de café, com velinha incluída. Há cinco anos que não bebo café, essencialmente porque o meu estômago o suporta mal, mas o café no Vietname é toda uma experiência local a ser tida, tão necessária quanto uma visita à famosa Baía de Halong. É vê-los, rua sim rua sim, homens vietnamitas de todas as idades, de copo  ou chávena na mão, bebericando café horas a fio.

Porém, é a primeira vez que vejo o líquido escuro de perto. O café que bebem os meus companheiros de mesa é espesso e luzidio e cheira a chocolate que se farta, o que será muito provavelmente o leite condensado a falar. Leite condensado, no Sudeste Asiático, é o proverbial pão nosso de cada dia em matéria de bebidas quentes. Se desconfiarem que está lá, é bem possível que esteja.

Quando me depositam em frente a chávena, dou-me conta de que vem fria e que a chama da vela não está lá para manter a bebida quente, mas para a aquecer. Quando a temperatura chega ao ponto ideal, dou o primeiro golo. Nesse momento inicia-se a luta entre as minhas papilas gustativas e o meu estômago, as primeiras a exclamarem "que bem que sabe!", o segundo a berrar "ai que me matas!". Por fim o estômago vence e a chávena fica a mais de metade. Ofereço-a a um dos meus colegas turistas.

Terminadas as apresentações e as primeiras conversas, à volta da mesa o consenso parece ser o de partirmos em comitiva rumo ao Museu de Etnologia, um dos (justamente) mais celebrados de Hanoi. Uma colecção que, bem vista, ocupa facilmente uma manhã ou tarde e que revela em detalhe a vida e as tradições de cada grupo étnico do Vietname. Fica fora do centro, mas em terra desconhecida um passeio de autocarro é sempre bem-vindo. Lá vamos os quatro, pois, cada qual com a sua mochila ou carteira, correndo por entre os pingos de chuva.

To be continued

terça-feira, 15 de abril de 2014

Hanoi ou a arte de atravessar a estrada - parte I

Há quem lhe chame o autocarro do inferno. São vinte e quatro horas na estrada desde Vientiane até Hanoi, com direito a passagem na fronteira para carimbar o passaporte. Uma verdadeira odisseia automobilística capaz de fazer homens grandes chorar. E digo homens grandes porque são precisamente esses os que mais choram, encolhidos e retorcidos durante horas para caberem nos seus lugares desenhados para o físico asiático.

Para mim, a questão nem se põe. Vou confortável no meu lugar aconchegado, quase espaçoso, a provar que andar de autocarro na Ásia é uma daquelas raras ocasiões em que o meu tamanho de bolso compensa. Talvez por isso não me tenha ficado memória amarga do trajecto que tantos temem. 

Recordo-me de deixar o Laos à luz abafada do crepúsculo e de logo travar amizade com três francesas que iam para o mesmo destino. De sentir o autocarro parar junto à fronteira, lá para as duas da manhã, e de ali ficarmos a dormir e a aguentar a bexiga até serem sete. Recordo-me da chuva torrencial que encharcava tudo, e nós em trajes de veraneio, desprevenidos para este clima, a sermos mandados sair para atravessar o posto fronteiriço. Depois a fazermos fila, a apresentarmos as bagagens para revista, a deixarmos em mãos oficiais o passaporte e uma módica "taxa de processamento". Por fim, já de regresso ao assento-cama designado, recordo-me do calorzinho do cobertor, de ler, de dormitar, de me perder no embaciado do vidro e de pensar na vida e em todas as razões porque gosto tanto de viajar de autocarro. No fim de contas, a viagem do inferno revelou-se pouco ou nada infernal, apenas longa, inesperadamente invernosa e algo parca em pausas para aliviar as necessidades naturalmente naturais.

Quando chegámos a Hanoi era novamente de noite. Partilhando taxi, cruzei pela primeira vez a cidade a caminho do hostel previamente reservado. As ruas reluziam no escuro, com os seus alinhamentos de lojas com nomes sonantes, logo rompidos pelo desgoverno dos mercados nocturnos. Do meu lado do vidro pressentia-lhe o vigor, a agitação, mas também, paradoxalmente, a delicadeza e um cosmopolitismo inesperado. Como viria a descobrir, Hanoi é uma cidade que faz uso de muitas caras.

To be continued...

quinta-feira, 10 de abril de 2014

De Pakse a Si Phan Don

Saio do tuk tuk, empoeirada, com aquele ar de quem andou à bulha com quilómetros de estrada e perdeu. 

À minha frente, uma rua comprida arrasta o seu amarelo semi-deserto até perder de vista, flanqueada por pequeno comércio, restaurantes, agências anunciando autocarros para os quatro cantos do país e um punhado de opções de alojamento correndo a meio gás. Um lugar perfeitamente apetrechado para a transitoriedade.

O que não surpeende. Afinal de contas, mais do que um destino em si mesma, a cidade de Pakse parece ser sobretudo um ponto de passagem para os turistas em trânsito para as ilhas do sul do Laos e a subsequente fronteira com o Camboja.

Dificilmente um cenário que inspire sonhos de uma passagem de ano animada; mas, porque quis a sorte, foi exactamente isso que aconteceu.

*

Feitas as amizades da praxe no hostel, compradas as passas e a cerveja-faz-de-conta-que-é-champanhe, tudo se encaminha para um trinta e um de dezembro morninho, fechado com brindes profusos e conversa tranquila entre companheiros de ocasião. Até que alguém se lembra de irmos investigar o que é aquela música festivaleira que vem lá de longe.

Atrás da música surge uma pequena tenda armada no meio da rua, uma bola de espelhos, luzes psicadélicas e, não, não estou a mentir, uma máquima de fazer fumo, tudo isto parte de uma festa privada do dono do restaurante indiano que rapidamente se converteu em pública ao atrair todos os vizinhos e turistas do bairro e arredores.

No meio da balbúrdia, qual visão sebastiânica, aparece o sorriso escancarado do meu amigo J., que de Luang Prabang também aqui veio dar no último dia do ano. Como não podia deixar de ser, caímos aos berros nos braços um do outro.

Com o correr da cerveja a música sobe, a multidão agita-se, as luzes rebrilham com novo vigor. É a berrata geral, daquelas boas, animadas, feitas da necessidade humana de celebrar. Pela meia-noite, não há já ninguém nesta tenda providencial que não dance como se não houvesse amanhã e que não se abrace e felicite como se o mundo inteiro fosse amigo do peito.



*
A minha primeira grande iniciativa de 2014 foi entrelaçar os atacadores mal atados nos grampos das botas e mandar um tralho tão valente que só com a palavra tralho ele se pode adequadamente descrever.

Constatada a queda, deixo-me ficar no chão uns momentos, com o joelho a arder, o pulso a tinir e o meu orgulho ufano de ano novo espalhado em cacos pelo alcatrão. 

Nisto dou conta de dois olhos preocupados que me fitam de um quintal aberto para a rua, mas assim que o corpo correpondente ensaia um movimento na minha direcção esforço-me por me por de pé e asseguro num sorriso arrancado a ferros:

- It's ok, I'm ok!

Coxeio para dentro do hostel à velocidade da luz (se esta fosse coxa) e, já no aconchego do quarto, trato de inundar o joelho raspado de betadine. Infelizmente, o pulso continuará dorido por mais uns dias e, para os raspões da alma, ainda ninguém inventou curativo.

*

No sul do Laos há um afamado paraíso tropical onde tudo o que se faz é dar uns passeios lanzeiros e balouçar na rede horas a fio, na companhia de um livro, de um côco ou de uma sonolência mansa que dificilmente se sacode. Chama-se Si Phan Don, ou, na língua lusa, Quatro Mil Ilhas. Apesar do nome, só três das ditas ilhas atraem realmente visitantes: Don Det, Don Khon e Don Khong.

A primeira serve sobretudo os backpackers, alguns dos quais se acostumam de tal modo a este modo de vida indolente que por ali ficam vegetando meses e meses. No espaço de poucos anos, passou de ilha sem electricidade e com uns quantos lugares para dormir a destino turístico privilegiado, cheio de bungalows a preços baratos, wifi gratuita e bares e restaurantes com vistas magníficas, não raro orgulhosamente anunciando happy pizzas, happy shakes, happy cocktails e o mais que as pessoas se vão lembrando que ficaria bem misturado com umas "ervas felizes". Neste universo alternativo, a geografia também tem regras muito próprias: uma pessoa está ou no lado do pôr-do-sol, ou no lado do nascer do sol ou, se for versão mais eremita, no lado sossegado, sem ciclo solar directamente visível mas com vistas para a ilha vizinha de Don Khon.

Depois de muita deliberação, e mesmo se um pouco renitentes perante a promessa de tanta vizinhança hippie e gastronomia artificialmente feliz, a mochila e eu decidimos que era justamente a Don Det que íamos dedicar os nossos dias de bezerranço. Afinal de contas, cada lugar é o que fazemos dele e assim teríamos a oportunidade de reencontrar a nossa amiga L., com quem tinhamos partilhado caminho até Vientiane, e que já lá estava no seu próprio bezerranço.

E foi assim que, um autocarro e uma viagem de barco depois, Pakse se transformou em Don Det. Calcorreei o que me pareceram quilómetros debaixo de um sol ardente, à procura de um bungalow simultaneamente barato, razoavelmente sólido, com casa de banho própria (duche frio, claro) e que ainda estivesse disponível. Quando finalmente assentei arraiais, tomei um banho e enchi o estômago. Depois estendi-me na rede, deixando ao sol o encargo de se ocupar do resto. E foi então que o meu novo ano pode finalmente começar a fazer juz ao nome.

Que não se faça confusão: Don Det já só em pouco se assemelha ao Laos real. No fundo, tem muito mais de criatura turística que de outra coisa qualquer. Mas nas pequenas partes da ilha ainda intocadas, à distância de uma caminhada ou pedalada fácil por planícies silenciosas e polvilhadas de animais vários, ainda sobrevive uma simplicidade pura, tranquila, digna dos melhores sonhos. Mais escondido, sim, mas um pouco desse calor simples e terno que é a essência do Laos ainda lá está, pronto a oferecer-se ao viajante que se aventurar fora do trilho das happy hours e dos happy shakes.







segunda-feira, 7 de abril de 2014

O caminho



Seis meses. Seis gloriosos meses, é o aniversário de viagem que esta quarta-feira celebrarei. E para assinalar a ocasião com a solendidade devida decidi passar o dia a bordo de um catamarã, enfrentando uma viagem de dois dias e duas noites pelas ilhas Whitsundays e pela zona interior da grande barreira de coral.

Enfrentando? Enfrentando. A verdade é que viagens de barco sempre foram um dos meus maiores medos. Não me interpretem mal. Como qualquer portuguesa que se preze, sei perfeitamente apreciar a magia de um belo oceano ou curso de água menor. Mas daí a meter-me lá bem no meio dele, balouçando agoniante e incessantemente, sujeita à vontade dos elementos, vai um belo salto. E sim, sei nadar desde os cinco anos. Mas daí a enfiar um tubo na boca, uma máscara na cara e andar feita astronauta marinha a espreitar o que se passa sob a superfície, rodeada de uma das faunas mais fenomenais mas por vezes também mais ameaçadora das redondezas, vai outro grande salto.

Felizmente para mim, não acredito em zonas de conforto. Afinal, é fora delas que tudo o que é interessante acontece. É fora delas que nascemos e nos fazemos gente. E é por isso mesmo que, ainda que vá com o credo na boca, o coração nas mãos e meia dúzia de sacos para o enjoo enfiados na mochila, me alegro pela coincidência de passar este dia especial de uma forma não menos especial.

Seis meses. Às vezes custa a acreditar que já tenham quase passado. Certo é que dentro deles existiu de tudo. Bom, mau, banal. Momentos inesquecíveis, horas de tédio puro. Amizades, antipatias, gente que veio e foi, gente que ficará. Sorrisos e sim, também lágrimas, por vezes felizes, por vezes não. Todo um dia-a-dia, enfim, porventura pouco habitual no seu aspecto exterior, mas comum na essência.

Com o tempo, foi-me ocorrendo que talvez o grande mérito de uma viagem não seja tanto o de mudar as circunstâncias do nosso quotidiano, quanto o de transformar a forma como o vivemos. Viajar devolve-nos ao presente e ensina-nos a prestar atenção. Exige-nos a paciência do pormenor e a liberdade do imprevisto. Predispõe-nos para o deslumbramento, para que nos deixemos levar de olhos, nariz, boca e pele destapados, como crianças entretidas a descobrir o mundo pela primeira vez. E recorda-nos que o mais importante é mesmo parar, cheirar as flores e darmo-nos conta, onde quer que estejamos, que o melhor de tudo não é o destino, mas o caminho.

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Não, este blogue não está morto, mas confesso que deu um trambolhão pela escada abaixo enquanto eu fui ali ao lado viver umas semanas mais desconectadas. Às vezes tem de ser. Mas não é de forma nenhuma um projecto abandonado e assim que eu sobreviva à minha aventura marítima dos próximos dias, estou determinada a voltar rapidamente à escrita, com as histórias em atraso. Espero que voltem também, para descobrirem como segue a trama. Obrigada pela vossa companhia e por continuarem aí!