Saio do tuk tuk, empoeirada, com aquele ar de quem andou à bulha com quilómetros de estrada e perdeu.
À minha frente, uma rua comprida arrasta o seu amarelo semi-deserto até perder de vista, flanqueada por pequeno comércio, restaurantes, agências anunciando autocarros para os quatro cantos do país e um punhado de opções de alojamento correndo a meio gás. Um lugar perfeitamente apetrechado para a transitoriedade.
O que não surpeende. Afinal de contas, mais do que um destino em si mesma, a cidade de Pakse parece ser sobretudo um ponto de passagem para os turistas em trânsito para as ilhas do sul do Laos e a subsequente fronteira com o Camboja.
Dificilmente um cenário que inspire sonhos de uma passagem de ano animada; mas, porque quis a sorte, foi exactamente isso que aconteceu.
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Feitas as amizades da praxe no hostel, compradas as passas e a cerveja-faz-de-conta-que-é-champanhe, tudo se encaminha para um trinta e um de dezembro morninho, fechado com brindes profusos e conversa tranquila entre companheiros de ocasião. Até que alguém se lembra de irmos investigar o que é aquela música festivaleira que vem lá de longe.
Atrás da música surge uma pequena tenda armada no meio da rua, uma bola de espelhos, luzes psicadélicas e, não, não estou a mentir, uma máquima de fazer fumo, tudo isto parte de uma festa privada do dono do restaurante indiano que rapidamente se converteu em pública ao atrair todos os vizinhos e turistas do bairro e arredores.
No meio da balbúrdia, qual visão sebastiânica, aparece o sorriso escancarado do meu amigo J., que de Luang Prabang também aqui veio dar no último dia do ano. Como não podia deixar de ser, caímos aos berros nos braços um do outro.
Com o correr da cerveja a música sobe, a multidão agita-se, as luzes rebrilham com novo vigor. É a berrata geral, daquelas boas, animadas, feitas da necessidade humana de celebrar. Pela meia-noite, não há já ninguém nesta tenda providencial que não dance como se não houvesse amanhã e que não se abrace e felicite como se o mundo inteiro fosse amigo do peito.
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A minha primeira grande iniciativa de 2014 foi entrelaçar os atacadores mal atados nos grampos das botas e mandar um tralho tão valente que só com a palavra tralho ele se pode adequadamente descrever.
Constatada a queda, deixo-me ficar no chão uns momentos, com o joelho a arder, o pulso a tinir e o meu orgulho ufano de ano novo espalhado em cacos pelo alcatrão.
Nisto dou conta de dois olhos preocupados que me fitam de um quintal aberto para a rua, mas assim que o corpo correpondente ensaia um movimento na minha direcção esforço-me por me por de pé e asseguro num sorriso arrancado a ferros:
- It's ok, I'm ok!
Coxeio para dentro do hostel à velocidade da luz (se esta fosse coxa) e, já no aconchego do quarto, trato de inundar o joelho raspado de betadine. Infelizmente, o pulso continuará dorido por mais uns dias e, para os raspões da alma, ainda ninguém inventou curativo.
No sul do Laos há um afamado paraíso tropical onde tudo o que se faz é dar uns passeios lanzeiros e balouçar na rede horas a fio, na companhia de um livro, de um côco ou de uma sonolência mansa que dificilmente se sacode. Chama-se Si Phan Don, ou, na língua lusa, Quatro Mil Ilhas. Apesar do nome, só três das ditas ilhas atraem realmente visitantes: Don Det, Don Khon e Don Khong.
A primeira serve sobretudo os backpackers, alguns dos quais se acostumam de tal modo a este modo de vida indolente que por ali ficam vegetando meses e meses. No espaço de poucos anos, passou de ilha sem electricidade e com uns quantos lugares para dormir a destino turístico privilegiado, cheio de bungalows a preços baratos, wifi gratuita e bares e restaurantes com vistas magníficas, não raro orgulhosamente anunciando happy pizzas, happy shakes, happy cocktails e o mais que as pessoas se vão lembrando que ficaria bem misturado com umas "ervas felizes". Neste universo alternativo, a geografia também tem regras muito próprias: uma pessoa está ou no lado do pôr-do-sol, ou no lado do nascer do sol ou, se for versão mais eremita, no lado sossegado, sem ciclo solar directamente visível mas com vistas para a ilha vizinha de Don Khon.
Depois de muita deliberação, e mesmo se um pouco renitentes perante a promessa de tanta vizinhança hippie e gastronomia artificialmente feliz, a mochila e eu decidimos que era justamente a Don Det que íamos dedicar os nossos dias de bezerranço. Afinal de contas, cada lugar é o que fazemos dele e assim teríamos a oportunidade de reencontrar a nossa amiga L., com quem tinhamos partilhado caminho até Vientiane, e que já lá estava no seu próprio bezerranço.
E foi assim que, um autocarro e uma viagem de barco depois, Pakse se transformou em Don Det. Calcorreei o que me pareceram quilómetros debaixo de um sol ardente, à procura de um bungalow simultaneamente barato, razoavelmente sólido, com casa de banho própria (duche frio, claro) e que ainda estivesse disponível. Quando finalmente assentei arraiais, tomei um banho e enchi o estômago. Depois estendi-me na rede, deixando ao sol o encargo de se ocupar do resto. E foi então que o meu
novo ano pode finalmente começar a fazer juz ao nome.
Que não se faça confusão: Don Det já só em pouco se assemelha ao Laos real. No fundo, tem muito mais de criatura turística que de outra coisa qualquer. Mas nas pequenas partes da ilha ainda intocadas, à distância de uma caminhada ou pedalada fácil por planícies silenciosas e polvilhadas de animais vários, ainda sobrevive uma simplicidade pura, tranquila, digna dos melhores sonhos. Mais escondido, sim, mas um pouco desse calor simples e terno que é a essência do Laos ainda lá está, pronto a oferecer-se ao viajante que se aventurar fora do trilho das happy hours e dos happy shakes.