quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Natal em Luang Prabang

To R., L. and J., who helped make this Christmas a Christmas, even so far away from home

O galo canta, o cão ladra, o galo canta, o cão ladra, o galo canta. São duas ou três da manhã e eu pestanejo no escuro, incrédula, enquanto uma verdadeira sinfonia campestre se alonga do lado de fora da janela da nossa pensão em Luang Prabang. Remexo-me e reclamo. A R. sugere que talvez se trate de um galo das Fiji, cheio de jet lag e gritando para que o levem de volta ao lar. Certo é que no nosso magnífico quarto com camas amplas e chuveiro forte estamos as três acordadas, algures entre a irritação e o riso inevitável. Adivinho que noutros quartos próximos a história seja a mesma. 

O cão ladra, o galo canta. E no meio de latidos e cantares eis que se ergue o som de tambores na distância. São quatro da manhã e os monges de Luang Prabang iniciam a sua procissão matinal, atravessando a cidade para receberem oferendas de arroz e outros alimentos da população local. Chamam-lhe Tak Bat e é uma cerimónia que não apenas contribui para o sustento das comunidades monásticas, mas recorda também aos fieis a importância da humildade e generosidade. A prática tem raízes na história do Budismo Theravada seguido no Laos, resultando de uma época em que os monges eram essencialmente itinerantes e, possuindo apenas o seu hábito e uma taça para peditório, dependiam das oferendas da população para sobreviver.

Durante a nossa estadia em Luang Prabang não consegui arrancar-me da cama cedo o suficiente para assistir à cerimónia. Melhor assim? Li depois que a afluência turística crescente, nem sempre com o respeito e o silêncio devidos a este ritual, tem contribuído para desvirtuar em parte o seu espírito.

De qualquer modo, sou geralmente a primeira a saltar da cama e pela hora em que as minhas amigas abrem definitivamente os olhos, já dei a volta ao mercado matutino, com as suas bancas e cestas de vegetais, frutas, bichezas várias, bebidas e até roupa e produtos de higiene.

Não obstante o sono interrompido, sinto-me bem no nosso poiso de algumas noites. Uma equipa quase exclusivamente composta por rapazes jovens e sempre sorridentes empresta ao sítio um ambiente familiar. Quando saímos e quando regressamos, não raro nos acenam da mesa do pequeno pátio exterior, onde conversam, comem, bebem ou apenas estão. Um deles conta-me que tem um amigo português e que por isso fala um pouco. A provar o ponto, sempre que me vê ensaia umas palavras na língua de Camões e saúda-me com um sentido "My Portuguese friend!". Numa das noites, em ambiente de festa com uns amigos que estavam de visita, regalam-nos com shots de aguardente local que de um só murro me desinfecta o estômago e extermina fauna e flora interiores. O ambiente é alegre, tiram-se fotografias, fazem-se caretas, trocam-se história. Quando, por fim, nos escapulimos as três para jantar a cerveja e a aguardente desceram-me já até às pernas, somando cinco quilos de peso a cada uma.

Luang Prabang anuncia-me, em versão relativamente moderada, o passo pachorrento que encontrarei em todo o Laos. Não, não é um país de correrias, alta intensidade, grandes happenings. É um prazer que se saboreia devagar, entre uma baguete de queijo e abacate, uma Beerlao e um pôr-do-sol colorido.

A cidade propriamente dita, sem dúvida que tem algo de artificial, uma beleza arrumadinha que intencionalmente interpela o turista para cocktails numa esplanada ou compras no mercado nocturno. Mas...  e depois?

A simpatia de quem cá vive, e os seus olhares doces, aquecem o coração. A arquitectura, repleta de resquícios do colonialismo francês, enche a vista. O rio embala, entre palmeiras. Baguetes e sumos de frutas tropicais tiram a barriga de misérias, sobretudo para quem passou os últimos meses privado de pão digno desse nome. Umas poucas centenas de degraus no monte Phu Si, no centro da cidade, permitem subir ao céu e fitar o sol poente olhos nos olhos. O Wat Xieng Thong (Templo da Cidade Dourada), no outro extremo da avenida ribeirinha, deslumbra com o seu colorido mosaico da Árvore da Vida e outros pormenores decorativos. E os caminhos que circundam a cidade levam, de tuk tuk ou de bicicleta e língua de fora, a cascatas rodeadas de verde e piscinas naturais azul-turquesa. Até alguns dos trabalhos artesanais à venda no mercado nocturno de Luang Prabang surpreendem, de imaginativos e convidativos que são. Um pouco mais adiante, a noite termina no conforto dos sofás do bar Utopia - ou na sua praiazinha artificial com areia e fogueira incluídas! - uma pequena pérola escondida como um tesouro entre ruas labirínticas.

Quando não estamos de passeio demos no hábito de jogar cartas e isso entretem-nos facilmente uma tarde, preguiçando junto ao rio de Dark Beerlao na mão. A galhofa faz passar rapidamente as horas e quando me dou conta a viagem mudou o seu ritmo e o seu rosto. Há um estar que se sobrepõe ao fazer, mas ao invés de empedernir a lógica da viagem, essa mudança dá novo fôlego a cada dia.

Numa série de pequenos inesperados, o nosso grupo engorda com a chegada de novos-velhos amigos: o B. e o V., dois jovens holandeses com quem a L. viajou durante algum tempo, e o J., o amigo alemão que todas três fizemos ainda em Chiang Khong e que por sorte se voltou a juntar a nós para o vinte e quatro e vinte cinco de Dezembro. Como tal, na noite de Consoada, há jantar a quatro, bem regado e bem disposto.

Porque no Laos há recolher obrigatório, os passeios terminam às onze e trinta da noite, hora em que chegamos ao quarto e nos preparamos para mais uma sinfonia de cão e galo. Um presépio improvisado, quem sabe... Afinal de contas, mesmo aqui, neste sítio distante, quente e essencialmente Budista, o Natal acontece.

Em Luang Prabang, a arquitectura revela
o passado do país
Um recanto junto ao rio
Assistindo ao pôr-do-sol no alto do monte Phu Si
Ripanso no refúgio para ursos junto à
cascata Kuang Si
Cascata Kuang Si
Cascata Kuang Si
Uma árvore de Natal diferente, um jantar
de Natal invulgar, o calor humano de sempre
Mergulhos na cascata Tad Sae
A Árvore da Vida e o Templo da
Cidade Dourada

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

We're not in Kansas anymore!

O barco ancora num morro de lama íngreme, o motor emudece e no seu inglês curto a tripulação avisa que é o fim da linha.

- Luang Prabang, Luang Prabang!

Olhares incrédulos, um murmúrio crescente, e logo uma voz indignada:

- No, not here, Luang Prabang!

A toda a volta, há um crispar de músculos colectivo, caras circunspectas e corpos hirtos preparando os espíritos para a ira profunda, rápida, implacável. Cedo se arma um pequeno motim. Há quem recuse mexer-se, recolher as malas, sair do barco, há quem se indigne e diga que comprou um bilhete para Luang Prabang e que só em Luang Prabang há-de desembarcar. Há quem fale de esquemas para ludibriar estrangeiros, quem ameace ficar no barco o tempo que for preciso.

Outros parecem resignar-se e pôr-se em marcha.

Por mim, vim semi-preparada. Tinha lido num fórum virtual que isto poderia acontecer, sermos deixados a seis quilómetros do centro da cidade para depois apanharmos um tuk tuk até ao destino final. A explicação oficial? Que o cais tinha mudado para ali, para descongestionar o trânsito junto à cidade, doravante reservado aos locais. A versão mais céptica? Que tudo se resumia a conseguir uns cobres extra para os condutores de tuk tuk.

Qualquer que seja a verdade, confesso que nenhuma das opções me repugna. Mas ocorre-me, enquanto suo as estopinhas para trepar pela lama escorregadia acima com duas mochilas às costas, que talvez tivesse sido interessante construirem efectivamente um cais (ou uns meros degraus de madeira) antes de declararem inaugurado o trajecto alternativo. Pergunto-me, enquanto um senhor amavelmente me estende a mão e me iça para terra mais plana, o que fariam pessoas idosas ou com mobilidade reduzida ante esta subida acidentada.

Claro que certas realidades aceitam poucos argumentos e verdadeiramente não têm remédio. Esta é uma delas. Há que trepar, calar e fazer fila para o bilhete de tuk tuk. Cumpridas as formalidades, e ladeada pelas minhas duas companheiras de viagem, vejo atarem as nossas mochilas ao tejadilo do tuk tuk trepidante que nos levará, por fim, ao centro de Luang Prabang.

A tarde encaminha-se para o lusco-fusco e neste fim de dia lento vão desfilando para nós caminhos de terra batida, casas simples e os primeiros sinais de um país bem diferente da Tailândia que acabámos de deixar. A paisagem arrasta-se, horizontal, o tempo aquieta-se.

Entrar no Laos de barco é entrar de forma oblíqua, quase sem notar. De repente uma pessoa acorda e está de pés enterrados no coração de algo novo. Só então se dá conta de que, de mansinho, ao ritmo das águas calmas do Mekong, o tornado de uma nova fronteira passou e varreu consigo o familiar. 

We're not in Kansas anymore, sussurou, inesperada, uma pequena Dorothy dentro de mim. E assim que o disse, ela soube que isso era bom.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Nas águas turvas do rio

Nas águas turvas do rio um branco intenso de espuma ergue-se à nossa passagem. O céu é azul-impossivelmente-azul, a água mais térrea que nunca e o ar derrama-se sobre a pele misturado com ocasionais salpicos.

Para muitos visitantes, é assim que começa o Laos.

De Huay Xai a Luang Prabang são dois dias de lenta navegação pelo rio Mekong abaixo, entre aldeias perdidas no tempo, colinas vestidas de verde e pequenas formações rochosas precipitadas para a superfície das águas por forças tectónicas primitivas.

Se ancoramos a recolher ou a largar carga e passageiros, olhares infantis, tímidos mas curiosos, não tardam a vir saudar a nossa chegada. Às vezes um coro de pequenas mãos acena e entre os do barco há sempre alguém que responde entusiasticamente.

Mais adiante é um grupo de homens sentados em roda de umas cervejas que devolve o nosso olhar com um sorriso, regressando depois à cavaqueira amena entre si.

Por vezes a estadia no ancoradouro demora uns minutos, enquanto alguns passageiros locais desembarcam pesados volumes para os morros de terra e caminham depois, com eles às costas, até desaparecerem por entre árvores e casario. Então a minha mente errante deixa-se levar por perguntas sobre a vida destas pessoas, as que se vão do barco, as que vêm da aldeia, as crianças que nos acenam, a mãe que carrega um pequenino ao colo, o homem que caminha descalço pelo enlameado junto à água, o outro que habilmente manobra uma embarcação ao redor da nossa.

Nos intervalos de rio sem gente à vista, as conversas, a cerveja e o sono vão entretendo o tempo dentro do slow boat, como é por aqui conhecido o barco pachorrento em que me encontro.

As águas são calmas, quase inertes, e depressa se dissipa o meu receio de enjoo, forjado ao longo de anos de estradas sibilantes e ferries e cacilheiros mal digeridos.

Pela primeira vez desde que saí de Lisboa viajo com companhia. Quero dizer, pela primeira vez faço planos conjuntos de viagem, para lá dos encontros e reencontros fortuitos que a deslocação contínua me vai proporcionando.

Conheci a L. e a R. em Chiang Khong e daí acabámos por partir juntas, porque o itinerário era comum. Não é necessariamente fácil abandonar os hábitos da viagem a solo, uma vez instalados, mas com estas duas amizades nascentes a conversa mostrou-se fácil logo de início e a companhia prazenteira. Não o sei, nem o pressinto ainda, enquanto deslizo na manhã clara e azul sobre o Mekong, mas muitas das melhores memórias da minha estadia no Laos ficarão ligadas a estas duas presenças inesperadas.







quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Novidades

E aqui estamos nós à beira de passar a marca dos quatro meses de viagem! (como devem ter notado, vamos com algum atraso no Diário de Bordo, mas nada de irrecuperável)

Assim sendo, é tempo de arrumar a casa e redecorar alguns dos quartos. Que é como quem diz, há novidades no blogue!

Desde logo, uma nova página com Recomendações, dedicada a alguns dos alojamento e actividades de que mais gostei até aqui.

Depois, um itinerário actualizado na página Onde e quando.

E para futuro, que espero que comece já nos próximos dias, para além dos habituais relatos de viagens teremos novos posts para a página Planear também é viajar.

Aproveito para novamente agradecer a todos que aqui (ou via Facebook) têm vindo ler o blogue e deixar nota da sua presença e do seu apoio!

Até já :)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Uma pausa inesperada em Chiang Khong

Numa pousada à beira do Mekong gela-se o corpo enquanto a chuva pontapeia o telhado. Estou sentada num promontório de madeira aberto a toda a volta, com cerca de uma dezena de mesas, algumas das quais ocupadas por outros hóspedes igualmente irregelados. O casal de portugueses que conheci esta tarde debandou em busca de refúgio no conforto do quarto. E eu, debaixo do meu insubstituível polar, janto sopa de glass noodles e tofu, como parece exigir este Inverno súbito e bizarro.

Há uma inércia no ar, uma preguiça de músculos relutantes em sair debaixo da roupa ou das cobertas que se arrastaram do quarto, e mesmo as conversas resistem ao seu normal fluir, empedernidas pelo frio. Nisto, alguém decide começar uma fogueira e a disposição muda. Cadeiras alinham-se em torno das chamas, interpelações cruzam-se, vozes crepitam de um lado e outro do círculo, plenas de histórias e partilha. Amizades de circunstância, tão instantâneas e transitórias como a nossa presença neste lugar.

Cheguei a Chiang Khong no autocarro das duas, com a mochila sobre as costas e um céu negro sobre a cabeça. Nuvens cinzentas que em breve se desfizeram nesta chuva que enche o escuro de ruído.

Estamos no começo do limbo, a última porta da Tailândia por onde passam os viajantes rumando em direcção ao norte do Laos. O trilho é conhecido e bem marcado. Chegada a Chiang Khong no autocarro da tarde, dormida numa pousada local e partida para a fronteira na manhã seguinte, com o fito último de apanhar o slow boat de dois dias para Luang Prabang.

Os meus planos imediatos são outros, porém. Venho decidida a ficar um dia mais, poisar malas, lavar roupa, enviar correio, organizar fotografias e reactivar o blogue, coisas pequenas e grandes de que se enchem os interlúdios desta vida feita a vogar de um ponto ao outro do mapa. Mas por agora, termino simplesmente a minha sopa e fico à conversa junto ao fogo, até o escuro, o frio e o prosaico cansaço me empurrarem para a cama.

Na primeira manhã, pelas seis, o raiar da aurora encontra-me desperta e atenta, aninhada na varanda do meu bungalow com uma manta até ao nariz e os olhos postos no horizonte laranja e nas águas terrosas do rio. Um hora mais tarde transito para o espaço comum no andar de cima, onde o dia começa a sacudir o sono com um pequeno almoço de torradas, ovos, chá e fruta.

Depois disso, trato dos deveres sem pressa nem hora, parando aqui e ali sempre que uma conversa desponta. Descubro a lavandaria local, com os mesmos preços indindescritivelmente baratos de sempre, passo pelo 7-Eleven, a ubíqua cadeia de lojas de conveniência nascida nos Estados Unidos e dominante por estas paragens, encontro os correios e a rua principal, paro, no meio disto, num carrinho de rua onde se vende chá tailandês com leite. Desfio, enfim, o meu novelo de deveres e prazeres, ao ritmo e à medida da minha vontade.

Com o correr das horas vou-me acomodando ao espaço e ao tempo deste lugar, uma cidade onde nada reclama esforço ou atenção, nada exige ser feito, nada exige ser visto, onde sem culpa recalcada uma pessoa pode dedicar as suas horas a contar nuvens e deixar correr o rio.

O meu dia de repouso vai-se convertendo em vários. Cada noite, o espaço enche-se e a pousada ganha vida; cada manhã, uma carrinha passa a levar o grupo de viajantes para a fronteira e o silêncio retoma o seu lugar. Ou quase. Um diminuto grupo de habituais vai-se mantendo de dia para dia, acrescido, de quando em quando, por uma cara nova. Habituais como o A., que aos oitenta e três anos leva sessenta e oito de viagem atrás de si, ou o J., que com vinte se encontra nos primeiros dias da sua viagem a solo de vários meses.

O casal que gere o espaço aparece a intervalos regulares, amigavel, prestável, acolhedor, decidido a transformar uma pousada como tantas outras num lar, mesmo que temporário. Talvez seja isso que ressoa em nós, os que ficamos a cada manhã, adiando por umas horas mais a nossa própria vez de embarcar.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Amor à segunda vista em Chiang Mai - parte II

Espanta-me que não tenha incendiado a casa. Espanta-me que me tenha atrevido a brincar com o fogo e não tenha queimado couro e cabelo no dia em que pegaram em mim e me levaram para uma quinta nos arredores de Chiang Mai, para me ensinarem os segredos da culinária tailandesa.

Mas assim quis a sorte que eu me surpreendesse a mim mesma com as minhas (até aí perfeitamente ocultas) habilidades culinárias. Posso agora, com todo o orgulho devido à ocasião, afirmar que caril, manga com sticky rice, pad thai e outras receitas populares deixaram de ter mistério para mim.

Ou quase. A verdade é que a nossa experiente e risonha professora nunca andava muito longe de cada fogão, pronta a acorrer a fogos e emergências várias, caso se suscitassem. E apesar de aprendermos a cozinhar os pratos desde o zero, a verdade é também que alguma alma caridosa tivera já o incómodo de descascar, lavar e cortar a maior parte dos ingredientes necessários às nossas brilhantes criações.

Assim sendo, reunidos em turma numa sala ampla e com balcões a toda a volta, não foi difícil seguir as instruções que nos iam sendo dadas, em formato acessível tanto ao perito gastronómico como ao trapalhão a fritar ovos.

Mas adianto-me, porque o dia não começou aí, na quinta. Começou, como tudo na vida, no princípio. E o princípio de todos os cozinhados é o mercado, onde fomos aprender a fazer leite de côco, escolher vegetais e verduras vários e distinguir diferentes tipos de arroz (o sticky rice com bago claramente mais branco, arrendodado e polido que os demais).

A isso seguiu-se uma ronda nas hortas mantidas pela escola de culinária que organizava o evento, com uma interessantíssima introdução ao mundo dos legumes e ervas de cheiro tailandesas. Cheirando, provando, mexendo e anotando mentalmente todo um novo mundo de estímulos sensoriais, fomos abrindo caminho até à zona da cozinha.

E só então, devidamente introduzidos ao tema, partimos para a prática. Porque tudo o que se cozinha é para ser comido, o dia foi passado num banquete interminável, com prato após prato a sair directamente das nossas mãos para os nossos estômagos estonteados com a alarve abundância.

No fim de tudo, com um saquinho de pad thai guardado para a ceia, rebolei para dentro da carrinha que nos levaria de volta à cidade. Por azar, verdadeiro azar dos Távoras, tinha tido a falta de tino de combinar um jantar para esse mesmo dia, de modo que o caminho de regresso a Chiang Mai foi passado a instar o meu corpo à digestão urgente. Perante tais apelos, o meu corpo, com o bom senso natural que lhe assiste, fez-se de mouco.

Não, os bagos de arroz não são criados iguais
Aprendendo a fazer pasta de caril vermelha
Inesperadamente, uma deliciosa sopa Tom Yum
sai da minha panela
Ao jantar, abrindo o saquinho de pad thai que
não consegui comer durante o
grande banquete

Amor à segunda vista em Chiang Mai - parte I

Não era uma casa portuguesa, com certeza. Era uma caixa de fósforos a que chamavam quarto, tão diminuta que um duende se sentiria apertado, e com paredes de madeira que deixavam passar a luz e o ruído por mil e uma frinchas, já para nada dizer da ampla janela voltada para a escadaria principal. Trocar de roupa sem exposição total só era possível de luz apagada e em posição estratégica num dos cantos do quarto. Dormir de um sono só, nem pensar.

O que pagava por noite não permitia grandes queixas, é certo. Em todo o caso, qualquer destas deficiências empalidecia perante uma outra, a real e indesculpável falha, que era o nível deplorável do serviço naquele que poderia muito bem merecer o título do hostel mais antipático do mundo.

Mas as coisas são mesmo assim: vivendo e aprendendo. E eu, depois de três noites de resistência orgulhosa e nervos à flor da pele, aprendi a valiosa lição de que se tudo cheira a reduto backpacker hiperturístico movido em exclusivo pela vontade de fazer dinheiro, é porque muito provavelmente é. Por fim, as circunstâncias fizeram com que saltasse para a pensão do lado. E ainda que o meu bolso tenha ficado um pouco mais leve durante essa segunda estadia, foi grandemente poupada a minha saúde mental.

É a partir do meu poiso neste paraíso reencontrado que posso finalmente descontrair e entregar-me à minha história de amor com Chiang Mai. Não vou dizer que não é uma cidade turística, porque em grande medida é exactamente isso que Chiang Mai é. Mas enquanto que as ruas de Banguecoque, mais a sul, levaram o seu casamento com a indústria turística até ao amargo final, as de Chiang Mai, por se turno, parecem ter congelado o romance num eterno estado de namoro prazenteiro, repleto de sorrisos e pequenas surpresas.

A entrada em Chiang Mai faz-se geralmente de comboio, com a manhã ainda no seu começo. Ao contrário dos homónimos chineses em que andei, este sleeper train tailandês não tinha vagões com camas montadas em permanência. Uma pessoa entra e senta-se em bancos normais, que algures a meio do caminho um elemento da tripulação vem transformar em camas com uma habilidade e rapidez invejáveis. Quem fica no andar de baixo tem mais espaço de manobra, quem poupa uns euros e escolhe o de cima ou é pequeno ou encolhe-se um pouco mais. E perde o privilégio de uma janela, o que significa que sem sair do conforto da cama perde também o raiar da aurora. Mas seja qual for o cubículo escolhido, é toda uma experiência em si mesma imperdível, esta viagem nocturna, mesmo tendo em conta os níveis incompreensivelmente árticos do ar condicionado no comboio em que viajei.

Ainda antes de desembarcar já tinha atado os laços de uma nova amizade com o M., um rapaz belga que por acaso se veio sentar ao meu lado no comboio, quando amanheceu, de café na mão e olhos ensonados. Passei com ele os primeiros dias em Chiang Mai e os dias seguintes com o R. e a A., os meus amigos que de Banguecoque também aqui vieram parar.

Uma vez na cidade, rapidamente me instalo na miríade de rituais diários que tanto aprecio. O mesmo é dizer, descrubo os meus recantos nos cantos da cidade. O templo mais bonito, com os seus tijolos e Budas cobertos de luz alaranjada assim que a noite cai. A esquina onde a cidade ruidosa se esbate para dar lugar a ruelas cobertas de árvores silenciosas. O café onde servem o melhor masala chai, bebido com indolência, com costas reclinadas sobre almofadas espalhadas pelo chão. O sítio de brunch com produtos biológicos e manteiga verdadeira. A loja de livros usados que não guarda os seus livros em plástico, permitindo assim folheá-los. O mercado onde se vendem jaca, mangostão e outras delícias de comer à mão cheia. A escola de massagem onde, em menos de nada e a preços de amigo, mãos experientes roubam quilos de peso a pés e pernas massacrados por dias na estrada.

É também aqui que tenho a minha primeira, e a até à data única, experiência de Monk Chat, um programa existente em vários templos que cria espaços de conversa entre visitantes e monges, permitindo aos primeiros aprenderem mais sobre o Budismo e a vida monástica e aos segundos melhorarem o seu inglês.

Se problema existe nesta simpática cidade - certo e sabido, nenhum namoro é perfeito - é que uma vez deixado o interior das muralhas que delimitam a cidade velha, o ar pertence aos motores, ao fumo, ao barulho. Mas há suficiente Chiang Mai para encontrar refúgio. Há suficiente Chiang Mai para fazer algo diferente, ou para não fazer nada, porque chove ou porque simplesmente apetece a inércia. Que delícia, num dia cinzento, bebericar um chai fumegante e conversar como quem joga pingue-pongue com o R. e a A., ou tão-simplesmente deixar passar a chuva enquanto se folheiam livros tirados aleatoriamente de uma estante. Não, não foi à toa que Chiang Mai conseguiu reunir uma comunidade apreciável de expats residentes e um coro de vozes que louva regularmente os seus méritos nos fóruns da Internet.

Passo dias a pensar passar mais dias. Tenho um pé que não quer cruzar a soleira da porta e outro que me diz que é demasiado cedo para assentar arraiais. No fim, a lógica da viagem impõe-se e o namoro termina, com um último adeus e inúmeras promessas de regresso. Não sei se estas promessas algum dia serão cumpridas, mas aquece-me o coração pensar que sim.

Esplendor dourado num dos muitos Wat
(templos) da cidade
"O" brunch e "a" manteiga
Wat Chedi Luang fora de horas
O magostão revela os seus segredos
 Num recanto escondido, o momento inesperado
Desporto e diversão: a linguagem universal
Vida de bairro