To R., L. and J., who helped make this Christmas a Christmas, even so far away from home
O galo canta, o cão ladra, o galo canta, o cão ladra, o galo canta. São duas ou três da manhã e eu pestanejo no escuro, incrédula, enquanto uma verdadeira sinfonia campestre se alonga do lado de fora da janela da nossa pensão em Luang Prabang. Remexo-me e reclamo. A R. sugere que talvez se trate de um galo das Fiji, cheio de jet lag e gritando para que o levem de volta ao lar. Certo é que no nosso magnífico quarto com camas amplas e chuveiro forte estamos as três acordadas, algures entre a irritação e o riso inevitável. Adivinho que noutros quartos próximos a história seja a mesma.
O galo canta, o cão ladra, o galo canta, o cão ladra, o galo canta. São duas ou três da manhã e eu pestanejo no escuro, incrédula, enquanto uma verdadeira sinfonia campestre se alonga do lado de fora da janela da nossa pensão em Luang Prabang. Remexo-me e reclamo. A R. sugere que talvez se trate de um galo das Fiji, cheio de jet lag e gritando para que o levem de volta ao lar. Certo é que no nosso magnífico quarto com camas amplas e chuveiro forte estamos as três acordadas, algures entre a irritação e o riso inevitável. Adivinho que noutros quartos próximos a história seja a mesma.
O cão ladra, o galo canta. E no meio de latidos e cantares eis que se ergue o som de tambores na distância. São quatro da manhã e os monges de Luang Prabang iniciam a sua procissão matinal, atravessando a cidade para receberem oferendas de arroz e outros alimentos da população local. Chamam-lhe Tak Bat e é uma cerimónia que não apenas contribui para o sustento das comunidades monásticas, mas recorda também aos fieis a importância da humildade e generosidade. A prática tem raízes na história do Budismo Theravada seguido no Laos, resultando de uma época em que os monges eram essencialmente itinerantes e, possuindo apenas o seu hábito e uma taça para peditório, dependiam das oferendas da população para sobreviver.
Durante a nossa estadia em Luang Prabang não consegui arrancar-me da cama cedo o suficiente para assistir à cerimónia. Melhor assim? Li depois que a afluência turística crescente, nem sempre com o respeito e o silêncio devidos a este ritual, tem contribuído para desvirtuar em parte o seu espírito.
De qualquer modo, sou geralmente a primeira a saltar da cama e pela hora em que as minhas amigas abrem definitivamente os olhos, já dei a volta ao mercado matutino, com as suas bancas e cestas de vegetais, frutas, bichezas várias, bebidas e até roupa e produtos de higiene.
De qualquer modo, sou geralmente a primeira a saltar da cama e pela hora em que as minhas amigas abrem definitivamente os olhos, já dei a volta ao mercado matutino, com as suas bancas e cestas de vegetais, frutas, bichezas várias, bebidas e até roupa e produtos de higiene.
Não obstante o sono interrompido, sinto-me bem no nosso poiso de algumas noites. Uma equipa quase exclusivamente composta por rapazes jovens e sempre sorridentes empresta ao sítio um ambiente familiar. Quando saímos e quando regressamos, não raro nos acenam da mesa do pequeno pátio exterior, onde conversam, comem, bebem ou apenas estão. Um deles conta-me que tem um amigo português e que por isso fala um pouco. A provar o ponto, sempre que me vê ensaia umas palavras na língua de Camões e saúda-me com um sentido "My Portuguese friend!". Numa das noites, em ambiente de festa com uns amigos que estavam de visita, regalam-nos com shots de aguardente local que de um só murro me desinfecta o estômago e extermina fauna e flora interiores. O ambiente é alegre, tiram-se fotografias, fazem-se caretas, trocam-se história. Quando, por fim, nos escapulimos as três para jantar a cerveja e a aguardente desceram-me já até às pernas, somando cinco quilos de peso a cada uma.
Luang Prabang anuncia-me, em versão relativamente moderada, o passo pachorrento que encontrarei em todo o Laos. Não, não é um país de correrias, alta intensidade, grandes happenings. É um prazer que se saboreia devagar, entre uma baguete de queijo e abacate, uma Beerlao e um pôr-do-sol colorido.
A cidade propriamente dita, sem dúvida que tem algo de artificial, uma beleza arrumadinha que intencionalmente interpela o turista para cocktails numa esplanada ou compras no mercado nocturno. Mas... e depois?
A simpatia de quem cá vive, e os seus olhares doces, aquecem o coração. A arquitectura, repleta de resquícios do colonialismo francês, enche a vista. O rio embala, entre palmeiras. Baguetes e sumos de frutas tropicais tiram a barriga de misérias, sobretudo para quem passou os últimos meses privado de pão digno desse nome. Umas poucas centenas de degraus no monte Phu Si, no centro da cidade, permitem subir ao céu e fitar o sol poente olhos nos olhos. O Wat Xieng Thong (Templo da Cidade Dourada), no outro extremo da avenida ribeirinha, deslumbra com o seu colorido mosaico da Árvore da Vida e outros pormenores decorativos. E os caminhos que circundam a cidade levam, de tuk tuk ou de bicicleta e língua de fora, a cascatas rodeadas de verde e piscinas naturais azul-turquesa. Até alguns dos trabalhos artesanais à venda no mercado nocturno de Luang Prabang surpreendem, de imaginativos e convidativos que são. Um pouco mais adiante, a noite termina no conforto dos sofás do bar Utopia - ou na sua praiazinha artificial com areia e fogueira incluídas! - uma pequena pérola escondida como um tesouro entre ruas labirínticas.
Quando não estamos de passeio demos no hábito de jogar cartas e isso entretem-nos facilmente uma tarde, preguiçando junto ao rio de Dark Beerlao na mão. A galhofa faz passar rapidamente as horas e quando me dou conta a viagem mudou o seu ritmo e o seu rosto. Há um estar que se sobrepõe ao fazer, mas ao invés de empedernir a lógica da viagem, essa mudança dá novo fôlego a cada dia.
A simpatia de quem cá vive, e os seus olhares doces, aquecem o coração. A arquitectura, repleta de resquícios do colonialismo francês, enche a vista. O rio embala, entre palmeiras. Baguetes e sumos de frutas tropicais tiram a barriga de misérias, sobretudo para quem passou os últimos meses privado de pão digno desse nome. Umas poucas centenas de degraus no monte Phu Si, no centro da cidade, permitem subir ao céu e fitar o sol poente olhos nos olhos. O Wat Xieng Thong (Templo da Cidade Dourada), no outro extremo da avenida ribeirinha, deslumbra com o seu colorido mosaico da Árvore da Vida e outros pormenores decorativos. E os caminhos que circundam a cidade levam, de tuk tuk ou de bicicleta e língua de fora, a cascatas rodeadas de verde e piscinas naturais azul-turquesa. Até alguns dos trabalhos artesanais à venda no mercado nocturno de Luang Prabang surpreendem, de imaginativos e convidativos que são. Um pouco mais adiante, a noite termina no conforto dos sofás do bar Utopia - ou na sua praiazinha artificial com areia e fogueira incluídas! - uma pequena pérola escondida como um tesouro entre ruas labirínticas.
Quando não estamos de passeio demos no hábito de jogar cartas e isso entretem-nos facilmente uma tarde, preguiçando junto ao rio de Dark Beerlao na mão. A galhofa faz passar rapidamente as horas e quando me dou conta a viagem mudou o seu ritmo e o seu rosto. Há um estar que se sobrepõe ao fazer, mas ao invés de empedernir a lógica da viagem, essa mudança dá novo fôlego a cada dia.
Numa série de pequenos inesperados, o nosso grupo engorda com a chegada de novos-velhos amigos: o B. e o V., dois jovens holandeses com quem a L. viajou durante algum tempo, e o J., o amigo alemão que todas três fizemos ainda em Chiang Khong e que por sorte se voltou a juntar a nós para o vinte e quatro e vinte cinco de Dezembro. Como tal, na noite de Consoada, há jantar a quatro, bem regado e bem disposto.
Porque no Laos há recolher obrigatório, os passeios terminam às onze e trinta da noite, hora em que chegamos ao quarto e nos preparamos para mais uma sinfonia de cão e galo. Um presépio improvisado, quem sabe... Afinal de contas, mesmo aqui, neste sítio distante, quente e essencialmente Budista, o Natal acontece.
Porque no Laos há recolher obrigatório, os passeios terminam às onze e trinta da noite, hora em que chegamos ao quarto e nos preparamos para mais uma sinfonia de cão e galo. Um presépio improvisado, quem sabe... Afinal de contas, mesmo aqui, neste sítio distante, quente e essencialmente Budista, o Natal acontece.
Em Luang Prabang, a arquitectura revela o passado do país |
Um recanto junto ao rio |