segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Aventuras em Khao Yai - parte II

Acordo com o primeiro pestanejar do sol. Saciada de sono, sou expelida da soleira da porta para a rua pela mesma força bruta que exorta cada bicho à vida. Rápido, rápido!, grita o novo dia, obstinando-se em começar. Toda eu me espreguiço. O brilho dourado da manhã cobre o mundo e enche de possibilidade e promessa o coração dos Homens. Para mim, a berma de estrada duvidosa de ontem amanhece pitoresca, genuína, refrescantemente remota.

Aproximo-me do restaurante semi-deserto. Após algumas buscas, consigo quem me sirva um pequeno-almoço de torradas, frutas e chá. Começo a refeição sozinha, no silêncio absoluto, mas pouco a pouco os bancos de madeira vão recebendo novos ocupantes e dentro de nada a vida canta a plenos pulmões.

Depois do pequeno-almoço, o nosso guia faz-se anunciar, reúne as tropas e começa a distribuir as primeiras instruções e as capas anti-sanguessuga. É hoje, por fim, o dia planeado ainda em Lisboa. Daqui partiremos à desfilada, na parte de trás de uma carrinha, com o vento a limpar-nos os restos de sono da cara e a rota apontada  ao nosso destino final: Khao Yai.

Situado a cerca de 180 km de Banguecoque, este parque nacional tailandês alberga uma interessante variedade de fauna e flora, justificando assim a sua classificação como património mundial pela UNESCO, enquanto parte integrante do complexo florestal Dong Phayayen - Khao Yai, que se prolonga para lá da fronteira com o Camboja. Aos viajantes é interdito aventurarem-se no interior da floresta e mesmo nos percuros autorizados, é exigido que se façam acompanhar por um guia.

O nosso é dos melhores. Com uma simpatia simples, que não esbanja mesuras, e um conhecimento feito de muitas e muitas horas a trilhar estes caminhos, vai-nos levando para os recantos onde adivinha estar a bicharada.

Durante o dia de passeio, alternando entre percursos de carro e caminhadas por entre as árvores, vamo-nos deparando com caras familiares e desconhecidas. Aqui um amigo macaco, ali um esquivo gibão, mais adiante um hornbill com o seu bater de asas magnífico, formigueiros que se erguem em altura, árvores milenares, formigas de corpo graúdo e determinação evidente, aranhas e as suas teias palacianas, e tantas outras maravilhas que testemunhamos enquanto avançamos pelo parque dentro.

Sinto no coração destemido a euforia de uma pequena aventura, a qual se vê ocasionalmente moderada por algumas doses de realidade, como quando o nosso guia decide alertar-nos para os perigos da febre da carraça, animal aparentemente abundante nestas florestas. Num automatismo colectivo, as mulheres do grupo levam as mãos aos cabelos, buscando possíveis inquilinos indesejados.

Todo o dia esperamos em vão o grande encontro com os elefantes. Nada é garantido no que toca a avistar bichos no seu habitat natural, por isso com o cair da tarde vamo-nos fazendo tristemente à ideia de que as cartas não nos reservaram tal privilégio. Eis que o telemóvel do nosso guia toca e partimos a todo o vapor. Sem mais palavras, sabemos que veio o alerta esperado: elefantes à vista!

Num incrível golpe de sorte, temos não um, não dois, mas três encontros imediatos de terceiro grau com elefantes, e se bem que por razões de segurança não nos seja permitido sair do carro, a proximidade é inegável. Entre a excitação de conseguir mais um minuto de vídeo e o cuidado para não irritar o objecto da nossa atenção, terminamos o dia num ponto alto.

Regressados à pensão, com caras felizes e corpos cansados, espera-nos um banho bem fresco, longe de ideal nesta zona de temperaturas baixas, mas indispensável para demover eventuais carraça ou sanguessugas dos seus propósitos maléficos. Eu, que gosto dos meus banhos com água pronta a cozer camarões, e que todo o dia jurei que banho ali nem pensar, entro com um gritinho contido na água gelada. E é nisto que, por entre tremeliques e arrepios, sinto um calorzinho inesperado chegar-me ao coração. O calorzinho orgulhoso de quem acabou de conquistar mais um pequeno desafio.






Fotografia tirada pelo guia
Fotografia tirada pelo guia
Fotografia tirada pelo guia


Aventuras em Khao Yai - parte I

Chegámos de noite. O carro encostou na berma da estrada e uma cara assomou ao vidro, confirmando que era ali. Era ali que eu ia dormir. Olhei para o outro lado do asfalto com olhos piscos. No meio do escuro vi um pequeno restaurante, meia dúzia de pessoas sentadas e nada mais. Nenhum letreiro, nenhum edifício em forma de pensão, nenhum sinal de ajuntamento humano assinalável. Mas garantiam-me que era ali o sítio certo e eu, atraída por aquele magnetismo irresistível que assiste às coisas que não têm mais remédio, segui o rapaz que me viera buscar.

A viagem que parecia simples começara com uma atrapalhação. Tinham-me muito generosamente oferecido uma boleia de Surin para as imediações de Pak Chong, onde eu ia passar a noite, para no dia seguinte fazer um trekking no parque nacional de Khao Yai. E eu aceitara. A proposta era sairmos pelas quatro e chegarmos pelas sete, mas ainda antes de nos pormos a caminho chegara a notícia de que o último troço de estrada para o meu destino final estava atulhado de trânsito, à conta de um concerto. A alternativa era ir de mota, com armas e bagagens. E mesmo assim ia levar o seu tempo. Torci-me toda por dentro, mas impedi-me de dar parte de fraca.

Contudo, este não seria o fim das atribulações. Algures a meio do percurso, o azar voltou a abater-se sobre a nossa pequena nau de quatro rodas e vimo-nos perdidos por terrenos escuros como breu e com buracos em forma de cratera lunar - e, é claro, sem GPS nem sinal no telemóvel! Quando, por fim, regressámos ao trilho conhecido iamos com um atraso assinalável e ainda nem tinhamos de chegar ao troço supostamente demorado.

Acho que roí unhas durante uma boa hora, até a actividade me ter esgotado a tal ponto que adormeci. Quando acordei tinhamos milagrosamente chegado, sem mota nem fila de que me tivesse apercebido. Como naquela magia que só o teatro e as viagens consentem, a catástrofe iminente fora misteriosamente evitada, -de certo que muito por mérito de quem, ao volante, venceu o cansaço para me levar ao destino final.

E contudo, nem assim se soltou do meu peito o proverbial suspiro de alívio. Pois aqui estava eu, ainda coberta de sono, a tentar em vão descortinar na noite cerrada os contornos da pensão cujas fotografias me recordava de ter visto na internet.

Sim senhora, dizia a cara do outro lado do vidro, era ali mesmo. Retomando mochilas e pensamento consciente, segui o rapaz. Os meus generosos convivas, depois de me acompanharem até ao outro lado da estrada e me verem bem entregue, voltaram a pôr-se ao caminho.

Dizer que atravessei o conjunto de mesinhas e bancos baixos à beira do asfalto com desconfiança no coração é dizer pouco. Dirigindo-nos às traseira do estabelecimento, passámos por um pequeno corredor, por um largo, por diferentes portas cerradas, sempre na semi-obscuridade, até que por fim, com o abrir de uma última porta, a luz se fez das trevas. Ali ia dormir, entre quatro paredes nuas, uma cama e uma casa de banho com sanita, lavatório e duche de água fria. Sem luxos, mas funcional. Deixaram-me as chaves, citaram-me um preço simpático e no mais gaguejaram perante as minhas subsequentes tentativas de colocar questões em inglês. 

Por via das dúvidas, mal me deixaram sozinha voltei a sair do quarto e fui interrogar a meia dúzia de pessoas que me lembrava de ter visto lá fora, sentada nas mesinhas. Sim, era mesmo aquela a guesthouse certa. Sim, era dali que saía o tour do dia seguinte para o parque Khao Yai. Por fim relaxei. A visão de túnel feita de stress e cansaço começou a dissipar-se e o meu cérebro dedicou-se finalmente a juntar as peças soltas daquele cenário e a construir uma pensão de beira de estrada, vulgar de Lineu, sem fantasmas evidentes nem esquemas ocultos.

Fora um dia longo e estava deserta por um banho e cama, mas a temperatura de fazer bater o dente e a ausência de água quente no chuveiro fizeram-me ficar pela segunda. Enrolei-me no meu polar, no forro de saco-cama e por fim na manta disponível, deixando trepar o calor pelas pernas acima. Denso como um manto, o sono não tardou em retomar o seu posto.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Surin em família

With much gratitude to J. and her family, who took me into their home with great generosity, warmth and kindness

Em Surin acabei de lavar as minhas mágoas com Banguecoque. Foi aqui que vim descobrir a outra Tailândia, a tal dos sorrisos, dos braços abertos, da grande generosidade.

Estamos no nordeste do país, na região do Isan. Li algures que menos de dois por cento dos turistas na Tailândia ruma a estas paragens. Não sei se é verdade, mas qualquer que seja o número, não registo mais que uma dezena de rostos ocidentais nos dias que aqui passo.

Passeando por Surin e arredores, vou anotando as diferenças. As estradas desimpedem-se e fazem-se ladear de paisagem agrícolas ou, no centro das cidades, de pequeno e médio comércio local. Ruínas e templos surgem mais espaçados entre si. O inglês reduz notoriamente a sua presença. Espaços e negócios destinados a estrangeiros deixam de sobressair. Na região do Isan, como talvez em poucos lugares na Tailândia, pressente-se um universo intensamente local, onde a indústria turística não se converteu ainda na medida principal de todas as coisas.

Foi em busca desse caminho menos percorrido que planeei a minha vinda ao nordeste tailandês. Valeu-me de encorajamento a grande sorte de me apresentarem a J., uma jovem tailandesa, amiga de uma amiga, a residir em Surin. Ela e a sua família acolheram-me sem reservas. Receberam-me magnificamente no seu lar, deram-me a conhecer a deliciosa comida local, os pontos de interesse da região, as rotinas e hábitos de cada lugar, e sobretudo - o que mais me tocou - convidaram-me a tomar parte do seu quotidiano familiar, partilhando comigo os seus dias. Gentilezas várias, que não esquecerei, e que me ajudaram a espreitar para lá do véu sob o qual um turista inevitavelmente experiencia uma terra.

O passeio de quatro dias começou neste templo, com o primeiro de inúmeros degraus alinhados em direcção ao Buda. Seguindo a tradição, entretive-me a fazer soar cada um dos sinos a caminho do topo, e depois também ao descer. No cimo, esperava-me como recompensa o olhar aprovador de dois Budas.




Noutro templo encontrei dezenas de caras sorridentes e olhos semi-cerrados, quem sabe se em meditação colectiva sobre a natuteza da iluminação. E logo em seguida encontrei a sua antítese, sob a forma de peixes vorazes e muito pouco inclinados à serenidade.



Noutro local, e no fim de mais umas escadas, mais um Buda.


Uma das visitas mais bonitas do meu curto périplo pelo Isan foi a que fiz às ruínas Khmers de Phanom Rung, sugestivamente situadas no topo de um vulcão extinto e envoltas em lindas vistas sobre os povoados mais abaixo.




O momento de glória de Surin tem lugar anualmente, num fim-de-semana em Novembro, durante o famoso festival de elefantes (elephant round-up). Centena destes gentis paquidermes são trazidos para a cidade pelos mahouts (treinadores), exibindo perante o público as suas proezas em jogos e espectáculos vários.

Fora desse período, e seguindo uma tradição com centenas de anos, é na aldeia Ban Tha Klang, a cerca de 60 km da cidade, que continuam a albergar-se os elefantes da região, com os respectivos mahouts e suas famílias.

Na aldeia é possível visitar o Elephant Study Center, observar os elefantes nas suas rotinas diárias e assistir a espectáculos em  que os mesmos realizam proezas como jogar futebol, pintar quadros ou "massajar" as costas de turistas voluntários. Durante o espectáculo são vendidos pedaços de bambu para dar de alimento às estrelas do show, alimento esse que trombas ávidas recolhem sem demora, no intervalo de cada número.

Visitei o local numa tarde quente, em busca de informação sobre o Surin Project, sobre o qual tinha lido na Internet. Desenvolvido pela Elephant Nature Foundation em colaboração com a Surin Provincial Administration Organization, este projecto procura fomentar em Ban Tha Klang melhores condições de vida para os elefantes e para os mahouts, evitando que por falta de recursos os animais fiquem acorrentados dias inteiros, sejam forçados a participar em mendicidade nas grandes cidades ou espectáculos de circo ou utilizados para as turísticas elephant rides.



Uma visita a uma cidade jamais fica completa sem um giro pelo respectivo mercado nocturno. No norte da Tailândia, os insectos são uma iguaria muito apreciada, e como tal não poderia faltar uma banquinha bem recheada deles.


Por fim, na aldeia Ban Tha Sawang, ouvi falar sobre o laborioso processo de trabalhar a seda.



Em breve chegou a hora das despedidas. Deixei Surin com um bilhete de comboio no bolso e a alma cheia. Quem sabe... talvez o futuro me reserve um reencontro com a J. e a sua acolhedora família. Talvez tenha, um dia, a oportunidade de retribuir as suas gentilezas, servindo eu de anfitriã em Portugal. Até lá, ficam-me as boas memórias e a gratidão.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ayutthaya ao entardecer

O sol esboroa-se sobre ruínas e arrasta o dia para o seu final. Caminhamos de câmara na mão, procurando o retrato perfeito do seu vermelho saturado, apressadas pela rapidez com que se esvai para lá da linha do horizonte.

Estamos longe do bulício de Banguecoque, tão longe quanto se pode estar numa cidade comparativamente pequena, polvilhada por ruínas de templos, alguns restaurantes, um mercadinho nocturno e um modesto punhado de turistas conduzindo bicicletas pelas ruas.

Ayutthaya, antiga capital do reino de Sião, destruída no séc. XVIII pelo exército birmanês e hoje classificada como património mundial pela UNESCO, faz parte do circuito turístico habitual. Uma paragem intermédia na concorrida linha ferroviária que une a capital e à popularíssima Chiang Mai, mais a norte.

Porém, no dia solarengo de Dezembro em que aqui desembarco, encontro-a surpreendentemente pachorrenta, movida apenas ao de leve pela correnteza de visitantes, mas no essencial voltada para o ritmo e para a lógica do seu dia-a-dia local.

Aqui chega-se de comboio, em cerca de três horas de viagem num vagão de terceira classe com janelas abertas de par em par, por onde passa o vento que despenteia e refresca. Foi aí que nos conhecemos, a holandesa e a portuguesa, as duas unida agora pelo benefício mútuo de um quarto partilhado.

À luz serena do entardecer, fazemos disparar as nossas máquinas, maravilhando-nos com a beleza do que nos rodeia. Caminhamos por relva e terra batida, evitamos os grupos de cães que reclamam como território seu certas áreas das ruínas, pegamos nas nossas duas rodas e lá zarpamos para o templo seguinte.

Conversamos dos tudos e nadas das nossas vidas, com aquele à-vontade que só em viagem é possível. De quando em quando, ziguezagueando por avenidas largas, passamos um cruzamento e ela alerta-me para qual o lado certo da estrada, já bem ciente da incapacidade do meu cérebro se habituar a uma simples inversão na regra da circulação à direita.

Finalmente, anoitece. Depois de um jantar de pad thai e um pequeno passeio no mercado nocturno, regressamos à pensão, onde nos espera um espanhol que conhecemos no comboio também. A noite passa-se em amena cavaqueira na esplanada do bar, com pernas e braços inocentes servindo de banquete aos mosquitos que rondam furiosamente.

No dia seguinte, fazemos os três uma última ronda em bicicleta, rumo a um templo envolto em silêncio e Budas de olhos postos no infinito. Combinamos um ponto de encontro e deixamo-nos vogar por trilhos separados, cada qual entregue ao seu ritmo pessoal. Caminho devagar entre as fileiras de Budas. A manhã está clara e o sol faz reluzir túnicas amarelas, que baloiçam ao vento. Por momentos deixo-me ficar quieta, a fitar as dezenas olhos de pedra, quem sabe se em busca de uma centelha de iluminação. Por fim subo as escadas em direcção ao topo da torre central e observo a vida vista do alto. Vejo cenas soltas passarem, sucumbindo à transitoriedade natural de todas as coisas.

Chega a hora do reencontro. No parque de estacionamento, regressamos às nossas bicicletas, distribuimos abraços, adeuses e desejos de boa sorte, e dispersamos depois, cada qual para o seu destino turístico seguinte. Com quase toda a certeza, nunca mais saberei de qualquer um deles. Do encontro não me ficam contactos nem fotografias de grupo, apenas a memória de qualquer coisa que alterou o curso dos meus dias. Assim é, por vezes, pela estrada fora.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Três retratos de Banguecoque

Se regras existem na cartilha do visitante de Banguecoque, entre elas está seguramente a obrigatoriedade de uma peregrinação à afamada e historicamente significativa tríade de templos, Wat Phra Kaew, repositório do Buda de Esmeralda e vizinho imediato do Grande Palácio, Wat Pho, onde o Buda permanece para sempre reclinado, e Wat Arun, o templo da madrugada.

Reluzindo ao sol como satélites terrestres da sua luz, estes complexos imponentes exibem com orgulho os seus dourados e cores garridas, os seus alinhamentos de Budas impávidos, as suas torres dirigidas ao céu, as suas paredes revestidas de murais de velha porcelana chinesa quebrada e reaproveitada para decoração, a sua estatuária peculiar e variada, os seus corredores frescos e escadarias intermináveis, cada qual recorrendo a uma surpreendente estética de opulência para exprimir na terra a majestade dos propósitos espirituais de despojamento e iluminação budistas.

Entrando e saindo de cada um destes lugares, uma pessoa rapidamente lhes descobre as regras essenciais. Nada de sapatos, que devem ser deixados à porta, como sucede, aliás, na maioria das casas e lojas tailandesas. Nada de ombros descobertos, decotes, calções ou saias acima do joelho. Nada de apontar os dedos dos pés ao Buda: devem estar recolhidos para o lado ou para trás.

Em cada canto, os monges aparecem em visões de laranja e eu, como mulher, devo ter o cuidado suplementar de não ficar a sós com eles, não lhes tocar, nem lhes entregar nada para as mãos directamente.

Wat Phra Kaew
Wat Pho
Wat Arun

*

Em Banguecoque, os encontros com a A. e o R. tornam-se o meu pequeno ritual diário. Os nossos planos para o dia-a-dia nem sempre coincidem, mas ao cair da noite é quase infalível a reunião em torno de uma refeição partilhada.

Frequentamos assiduamente um pequeno restaurante a dois passos do meu hostel, onde, além de comida, se faz magia. Alguns truques são engraçados, outros magnificamente bons. A moeda que penetra o fundo de uma garrafa de vidro. O pedaço de carta rasgado à nossa frente, que reaparece cravado dentro de um gomo de tomate cortado diante dos nossos olhos. Impossível! Viste aquilo?! Como é que... Mas é mesmo assim. Não saber faz parte do encanto, parte da diversão. É o que ele nos diz, o gerente, o mágico de serviço, o perfeito entertainer, sempre que tentamos levantar o véu que cobre o mistério.

O melhor truque de magia de sempre,
num restaurante em Khao San

*

Aterra-se na Ásia com medo de quase tudo. Da água, da comida de rua, da fruta sem casca, dos legumes crus, das bebidas com gelo, dos gelados... Nos primeiros dias, caminha-se pelas ruas e a cada canto recordam-se os alertas da consulta do viajante e as histórias de terror lidas online.

Depois, um dia, o corpo avisa-nos de que não vai ficar um ano a bananas e sopas fervidas. Depois, um dia, alguém nos oferece uma bebida gelada que não podemos, sob pena de descortesia, recusar. Depois, um dia, a gula e o calor pedem um gelado.

E com o tempo as regras vão cedendo, rachando aqui e ali como madeira velha, até a casa das nossas cautelas alimentares ruir por completo. Ou quase. Ficam os cuidados com a água e umas coisas mais, mas passa a ser um teste de instinto que é aplicado a tudo o resto. Um teste do tipo, sinto que é fresco ou não. Acho que vai correr mal ou não. Muito pouco científico, concedo, mas do mais eficaz que existe.

Na China, só lá para meio do caminho é que comecei a aligeirar os medos e a perceber que, para além de algum bom senso importante, o mais eram exageros. Mas Banguecoque foi o sítio onde perdi de vez a maioria das teimas e receios em matéria de alimentação. E ainda bem, porque se há coisa que aqui vale a pena, é comer de tudo um pouco.

Pequeno almoço: mini-crepes com recheio de
côco e milho
A delícia da jaca
Gelado de côco servido na casca do próprio fruto
Pad Thai - um de muitos!
Chá tailandês com leite, a minha nova obsessão
Tom Yum
Manga com sticky rice e leite de côco
Cerveja Singha, melhor que as concorrentes

Dias quentes na cidade inquieta - parte II

Quem sabe o que nos faz gostar ou não de uma cidade? Que alquimia particular existe por detrás desse primeiro olhar que nos apaixona ou repugna, ou simplesmente desinteressa? Facto é que o essencial ao coração de uns é tantas vezes invisível aos olhos de outros. E para mim assim foi, em Banguecoque.

Nesta cidade dispersa e massificada, pouco me comoveu ou fez sonhar. Tocou-me o esplendor dourado dos templos e a delícia inegável das banquinha de comida de rua. Mas perturbou-me sentir que qualquer um deles foi já, de certo modo, convertido na caricatura perfeita de si próprio, reduzido ao triste fim de produto para consumo turístico em grande escala.

Depois os sorrisos. Essa bandeira nacional tailandesa em progressiva extinção na capital, onde a amabilidade por vezes parece um instrumento comercial entre outros, rápido a desaparecer sem rasto assim que a ausência de intenção de compra é declarada.

Em completa justiça, devo precisar que cometi um grave erro estratégico. Escolhi, em retrospectiva mal, ficar alojada na cidade velha, perto da meca turística que dizem ser Khao San Road e que, parece-me a mim, pouco mais consegue ser que a expressão corpórea daquilo que de pior o turismo pode fazer a uma terra.

Caminhando pelas ruas, vejo pensões e hostéis aglomerados como formigas, alguns ladeados de bares e restaurantes preparados para a melhor noite de farra, outros por casinhas de massagens e agências de viagens lutando por uns minutos de atenção. Vejo bancas de roupa a perder de vista, dificilmente diferenciáveis umas das outras, e no intervalo destas, bancas de rua vendendo o mesmo pad thai e a mesma manga com sticky rice. Os mesmos dizeres, os mesmos preços, os mesmos produtos típicos, multiplicados até à exaustão. Ruas que são uma sucessão de espelhos reflectindo outros que os refectem a si.

Uma cidade é uma cidade é uma cidade, terá sido isso? Terá Banguecoque sido vítima das minhas expectativas elevadas e da simples semelhança fundamental que afecta todos os grandes aglomerados urbanos?

Talvez. Ou talvez seja só esta parte da cidade em particular. Sair daqui, porém, revelou-se difícil. Ruas cortadas e transportes alterados converteram este bairro desprovido de sky train ou metro num enclave para dentro do qual se resvala facilmente. Sair de taxi é possível mas caro e custa pelo menos o tempo de deixar passar uns quantos até que um deles se diaponha a ligar o taxímetro. Muito poucos o querem fazer, agora que o trânsito leva tempos infinitos a circular em Khao San, insistindo antes na negociação directa do preço.

Digo a mim mesma que talvez haja melhor Banguecoque fora deste lugar e que talvez um dia eu regresse para a viver. Decido, por ora, suspender o julgamento, adiá-lo para outra visita, sem Khao San e arredores, sem protestos, sem expectativas atravessadas no caminho da pura realidade.

Dias quentes na cidade inquieta - parte I

Aterro em Banguecoque. Uma parede de calor húmido empurra-me dois metros à retaguarda assim que cruzo a porta do aeroporto de Don Muang, situado a cerca de 25km do centro da cidade. Aturdida como uma mosca mole de fim de Verão, procuro focar os sentidos, numa tentativa vã de interpretar o caos que sempre se instala com a chegada a um novo lugar.

Estamos à beira da estrada. Sem sequer um piscar de olhos, J. avança como se com facas pela parede dentro e acena ao taxi cor-de-rosa que se aproxima, indicando-lhe que pare. Deposito a mochila na bagageira e entro para o banco da frente, importando por uns breves segundos o meu calor para dentro do habitáculo artificialmentente gelado. Lentamente, sinto-me regressar a mim.

J. é tailandesa e amiga de uma amiga. Após os nossos primeiros contactos, via Internet, teve a generosidade de me convidar a passar uns dias em casa da sua família, na província de Isaan. Mas isso será depois. Hoje, de passagem por Baguecoque, veio buscar-me ao aeroporto por causa dos protestos.

Durante as últimas semanas a imprensa internacional tem dado conta da tensão crescente que se instala nas ruas da capital tailandesa, dirigida contra o Governo, e apesar de ter decidido vir na mesma, não posso afastar uma centelha de insegurança quanto ao que cenário que me espera no outro lado desta viagem de táxi.

Deslizamos pela autoestrada, fintando o trânsito, enquanto os arredores da cidade vão desfiando a sua história num emaranhado de casas e arruamentos para lá do que a vista alcança. O rádio palra, incompreensível, mas de algum modo universal.

*

Horas depois estou no hostel, compartimentada entre um cacifo e a cama de cima de um beliche e aguardando a hora de ir ter com os meus amigos A. e R., dois portugueses também em viagem com os quais o destino me quis reunir nesta cidade. Passarei parte dos próximos dias com eles, num interlúdio imprevisto mas muito bem-vindo na rotina desta viagem a solo.

Do meu novo poiso na área de Khao San, a manifestação pressente-se mais do que se avista. Ruas cortadas alertam o turista para que desvie os seus passos, ruídos distantes deixam supor algo de invulgar e os percursos de autocarro revelam-se impossíveis de realizar nos termos habituais, denunciando entorces à norma do dia-a-dia. Mas nos circuitos e atracções turísticos um pessoa sente-se surpreendentemente distante de tudo isso, como se duas ou três ruas de intervalo bastassem para abrir um universo paralelo onde o tumulto não pudesse chegar.

*

Talvez esta estranha tranquilidade resulte da noção de que os protestos têm, até aqui, sido relativamente pacíficos. Certo dia, regressando ao hostel depois de uma manhã de passeio, esbarro com uma pequena multidão acenando bandeiras e brandindo megafones em frente a um Ministério da Defesa alarmantemente couraçado por arame farpado e uma barreira policial compacta. Apesar do aparato visual e sonoro, é-me permitido passar sem perigo, penetrando as entranhas do ajuntamento, onde outros turistas permanecem especados com os seus telemóveis e máquinas fotográficas em punho. Uma electricidade palpável percorre o ar, propagando-se através dos corpos esticados e vigorosos e com cada grito ou palavra de ordem. Mas de um e outro lado da barricada, algo impede a explosão.

*

Só dias mais tarde, com o exaltar dos ânimos, os protestos ganharão forma e dimensão concreta para a maioria de nós, turistas de passagem pela cidade. Uma madrugada quente virá juntar o som de tiros ao coro de vozes indignadas que habitualmente se pode ouvir à distância. No dia seguinte, a cifra negra de quatro mortes chega à imprensa e as ruas em redor de Khao San amanhecem desertas das habituais bancas de roupa, fruta e demais comes e bebes.

*

Passarei quase quatro semanas na Tailândia. Durante esse tempo encontro nas opiniões alheias visões radicalmente opostas destes protestos. Há quem os condene como desculpa para afastar um Governo democraticamente eleito. Há quem os defenda como a única forma de depor um Governo que consideram corrupto, controlado de facto pelo irmão da actual Primeira Ministra.

Certo é que estas cisões não são de hoje. Os actuais protestos trazem atrás de si um longo historial de tensões políticas na Tailândia e a memória dos incidentes violentos de 2010 ainda paira no imaginário colectivo como um sinal de alerta. Camisas vermelhas de um lado, camisas amarelas de outro, é a expressão cromática simples de uma equação política complexa, que ao longo dos anos se tem furtado a uma solução definitiva.

Vou passando os olhos pela imprensa, à procura de novidades e possíveis sinais de alerta. Variáveis como ondas, as manifestações vão-se inflamando e aplacando ao sabor dos acontecimentos, até um dia a notícia sair nas primeiras páginas: Parlamento dissolvido, o país avançará para novas eleições. As manifestações, essas, continuam.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O primeiro dia

O primeiro dia fez-se dia com o primeiro raio de luz. Acordei, estremunhada, na minha cama de uma noite só, e refiz as malas desfeitas na véspera. O mundo ergeu-se do escuro assim que olhos fechados arredaram a cortina e a vida, com as suas formas infinitas, fez novamente de mim pessoa ao primeiro respirar.

Vesti a roupa, tomei o pequeno-almoço. Apanhei o autocarro e parti para sul, levando o sol atado ao lado de fora da janela, arqueando no céu limpo como um balão. No primeiro dia nasceram os primeiros gestos e as imagens vieram nítidas, como ao despertar.

Do autocarro desci para o barco e comigo desceu a poeira da estrada, entranhada na minha pele e nos meus cabelos, entranhada no meu modo presente de ser. As águas abraçaram a madeira e fizeram-na deslizar no seu corpo sereno. 

Pus o pé seguro numa ilha. Caminhei transpirada, colada às roupas e aos pequenos cansaços, mas por fim descobri o meu centro. Banho de água fria, um bungalow modesto, ventoinha, rede mosquiteira, cama generosa e uma pequena tábua a servir de apoio aos objectos pessoais mais imediatamente necessários. 

Dormitei. Baloucei na rede. Senti ferver a pele e o meu joelho recém-esfolado. Senti a saciedade de uma refeição perfeita. Enxotei insectos com pouco vigor e pressenti caminhar as criaturas pequenas pela terra quente. Abandonei as palavras. Recostada, deixei o sol rolar como uma laranja gorda para trás das árvores.

No primeiro dia as horas reduziram-se à sua quietude primitiva e fundamental. Não vieram epifanias, nem revoluções. Nenhum movimento ousou romper a pele perfeita deste presente, sempre primeiro e sempre único, como todos os primeiros dias que vieram antes de si.

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Com um post de Natal e outro de Ano Novo encerra-se o inesperado período de férias deste blogue. Regressaremos aos posts habituais nos próximos dias.