quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A hora do salto

Do sofá da sala, a minha mochila olha-me ansiosa, escondida sob a gigantesca capa de protecção que lhe comprei para evitar que as suas correias e alças acabem comidas pelas rodas dentadas de algum tapete de aeroporto.
 
Convencionámos, ela e eu, que nesta viagem rumo ao desconhecido eu lhe deixaria a cargo a tarefa de se enervar. Já eu, do alto do meu zen, viveria cada eventual dificuldade com a calma impassível de uma montanha milenar.
 
Mas hoje, que é de manhã, que tudo foi dito, feito e empacotado, e que o meu voo para o outro lado do mundo se abeira a passos de galgo, a montanha milenar dentro de mim parece ter sido substituída por uma colinazita marreca, e eu mais não posso fazer que devolver à minha fiel companheira de viagem o seu olhar ansioso e mudo com outro igual.
 
Estamos nos minutos antes da hora zero e por momentos eu volto a sentir-me aquela rapariga vestida de preto e laranja, com a vida atada a um paraquedas, sentada à porta de um aviãozito em formato lata-de-sardinha, pernas a roçar a barriga da máquina e o externo projectado para o vazio. Aquela rapariga simplesmente à espera, sem nada a não serem duas alças aos ombros a que se agarrar. É essa a emoção, essa corrente desnorteada mesmo antes do salto, alegria intensa e sonhos realizados a misturarem-se às golfadas com a perda súbita de todos os pontos de referência, é essa a força que agora me invade por dentro e extravasa para estas linhas.
 
Um famoso naturalista americano disse um dia: salta, e a rede aparecerá. Agora, como naquele dia, repito-o para mim mesma, e sinto nessa repetição a força da minha montanha milenar, subitamente regressada.
 
Este será o último post que faço aquém-fronteiras. Algumas das minhas pesquisas alertam para que, uma vez na China, talvez não seja possível vir aqui dar notícias. Se assim for, voltarei à fala logo que consiga. Caso contrário, cá nos veremos em breve, para o primeiro capítulo desta aventura.
 
Até breve!
 
PS - Aproveito para vos dizer que está corrigida uma falha que me assinalaram relativamente à secção de comentários, que anteriormente não era possível utilizar sem um perfil registado. Agora já é possível fazê-lo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

7 ideias para esvaziar uma casa

Não digo que tenha sido simples, nem digo que tenha sido rápido, mas foi seguramente necessário. Se houve coisa que tive por certa logo desde o início da preparação desta viagem foi a de que, embora com alguma pena, não iria manter o arrendamento da minha casa, nem contemplar a hipótese de pagar por um espaço para guardar mobília, máquinas e demais recheio. Era demasiado tempo para que outra solução me parecesse prática e, nalguma medida, percebi que a ausência de uma tal âncora física me ajudaria também a viajar mais leve.

Assim sendo, havia forçosamente que arranjar destino para aquilo que não coubesse na mochila de viagem ou no espaço das gavetas e prateleiras gentilmente cedidas pela família em sua casa.

Tendo lançado mãos à tarefa de triar os artigos para guardar, para vender, para dar e para o lixo, dei-me conta de duas coisas: que uma pessoa acumula em poucos anos tralha suficiente para distribuir por uma pequena aldeia; e que é bem mais fácil acumulá-la que arranjar-lhe novo destino. Para dizer a verdade, não sabia o que fazer com muito do que queria pôr fora de portas.

Ao longo do processo, e com a ajuda da Internet, fui recolhendo algumas ideias e contactos que me foram bastante úteis, e que aqui partilho pelo tempo que possam poupar a outros viajantes com as mesmas inquietações -- ou, porque não, a pessoas que queiram simplesmente uma versão mais arejada e minimalista das suas casas.

Eis o que experimentei:
  • Vender em segunda mão no portal Olx. Para minha surpresa, revelou-se uma forma rápida e eficaz de trocar pertences desnecessários, sobretudo máquinas e móveis, por algum dinheiro, embora seja preciso flexibilidade na fixação do preço e uma paciência de Jó para lidar com contactos que não dão em nada e com os agendamentos que nos deixam pendurados.
  • Perguntar a família e amigos: há sempre qualquer coisa que pode dar jeito a alguém!
  • Doar a uma instituição de solidariedade social. No caso, lembrei-me de contactar a Fundação O Século, para material escolar e de papelaria e alguns jogos e bonecos que ainda por aqui tinha, e o Centro de Acolhimento para os Sem-Abrigo de Xabregas, do Exército da Salvação, para roupa, malas e artigos afins. Tinha também pensado na associação Acreditar, mas pelo que percebi do site, visto que estão em causa crianças com o sistema imunitário debilitado, é necessário que os produtos estejam novos, ou praticamente novos, e os meus já eram antigos, pelo que não quis arriscar. Mas ficou em carteira para uma próxima vez. E porque nem sempre nos lembramos de uma instituição que precise daquilo que temos para dar, é interessante consultar as listas da Bolsa de Produtos, integrada no site da Bolsa do Voluntariado, e que divulga as necessidades materiais das instituições e organizações, na área dos produtos não alimentares.
  • Entregar óculos, lentes e armações, mesmo que já velhinhos, ao Lions Clube, que, segundo me explicou uma simpática funcionária, os envia para Espanha, onde são recuperados e expedidos para países em vias de desenvolvimento. 
  • Entregar livros, revistas, DVD e CD ao Serviço de Aquisições e Tratamento Técnico da Rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa, que depois de uma triagem prévia os envia ou para bibliotecas públicas ou para instituições que deles necessitem.
  • Entregar material eléctrico e electrónico à Entreajuda, que assegura a sua distribuição por instituições necessitadas ou, caso já não funcionem e não tenham conserto, o seu envio para a reciclagem.
  • Contactar a Câmara Municipal de Lisboa para pedir a recolha de artigos que não possam ser dados nem reciclados, e cuja dimensão ou quantidade impeça que sejam simplesmente deitados fora no lixo doméstico indiferenciado. Ainda sobre lixo e reciclagem, vale a pena tirar dúvidas sobre o que vai para onde nos sites da ValorSul e da Câmara Municipal de Lisboa.
Se tiverem outras sugestões, não deixem de as partilhar na secção de comentários!

domingo, 6 de outubro de 2013

Todas as histórias começam no princípio

Não me lembro de uma idade em que não ansiasse pela viagem.

Um dia, com onze anos, e um amigo igualmente optimista, peguei num mapa de escola, daqueles que se usavam na quarta classe para aprender os distritos, e juntos traçámos o percurso de uma volta a Portugal em bicicleta, com tendas às costas e tudo.

Faríamos quilómetros diários, carregaríamos o nosso equipamento sem problemas de maior e sobretudo viveríamos a aventura das nossas ainda curtas vidas, plena de emancipação! Uma aventura prematuramente abortada, como seria de esperar, com muitas lágrimas à mistura, como também seria de esperar naquelas idades pré-adolescentes.

Justiça seja feita aos meus pais, a eles devo muitas das viagens e aventuras que vivi depois disso, até chegar à altura de começar eu mesma a decidir as minhas deambulações. Mas seja pelo que for, por aquele projecto inicial frustrado ou por outra coisa qualquer, a vontade de correr mundo nunca mais desapareceu.

É difícil descrever a mistura de doce melancolia e euforia ansiosa que se abate sobre uma pessoa na hora em que vê os seus pertences vendidos em lotes e o pouco sobrante disposto sobre uma mesa, à espera de caber numa mochila de 45 litros e nada mais. É nestas alturas que consideramos o essencial e nos purgamos do acessório, esperando corresponder ao provérbio oriental segundo o qual o viajante nada mais deve possuir do que aquilo que couber numa pequena caixa pendurada ao seu pescoço.

Confesso que este minimalismo é uma das coisas que mais me atrai na viagem e talvez também uma das que mais me desinquieta. Despachado o último caixote para dar ou vender, visitado o último amigo, feita a  última despedida, chegamos ao sítio onde mais nenhum objecto ou forma de protecção encobre a essência daquilo que somos, e então a vida vem ao nosso encontro de uma forma crua, sem filtros.

Dizia alguém, cuja identidade já não consigo recordar, que o que procurávamos todos não era o sentido da vida, mas a experiência de estar vivo. Gosto de pensar que assim é. Nas histórias de um livro, nos meandros de uma oração ou no primeiro quilómetro de um longo caminho, talvez estejamos todos à espera da sensação esquiva e inimitável de termos alcançado algo de novo e completamente verdadeiro.

Na hora da partida, uma pessoa nunca sabe se está preparada. Há sempre a dúvida que se instala, embrulhada numa capa de saudade e nervosismo, e sim, também num pouco de medo pelo futuro cujos contornos teimam em não se revelar. Mas gosto de acreditar que estes amargos da alma, como os amargos da boca, são a forma que o nosso corpo tem de nos avisar de que chegámos a território desconhecido, ao sítio onde a rotina cega termina e a descoberta começa.

No dia de hoje, a pouquíssimos do início da grande aventura, considero tudo isto e faço a resenha das últimas tarefas. Dentro de pouco tempo aterrarei no dorso do dragão chinês e o resto, como se costuma dizer, será história. Espero que aqui regressem para a acompanhar.