sexta-feira, 23 de maio de 2014

Um retrato de Hoi An

Se alguma vez passarem por Hoi An, deixem-me dar-vos um conselho de amiga: não experimentem as panquecas de banana e os bolinhos de côco fritos. Sobretudo, não experimentem os dois de uma vez!

Poderão sentir-se tentados, por estarem com fome e verem turistas a comprar daquilo por toda a parte. Mas garanto-vos que depois andarão a deambular pelas ruas com o estômago do avesso e a boca a saber a fritadeira industrial.

Versão banana
Versão côco

Muitos viajantes desenvolvem uma paixão fervorosa por Hoi An. E razões para enunciar a seu favor não faltam. Há o charme da sua Cidade Antiga, que a UNESCO classificou como património da humanidade. A praia à mão de semear. Os mistérios culinários envolvidos na preparação do seu do cao lau - um prato de massa com carne de porco e vegetais, que, segundo dizem, só com a água de uma fonte local fica no ponto.

Ponte japonesa, um dos ícones de Hoi An
Na Cidade Antiga

Uma coisa é certa: se a oportunidade de mandar fazer um guarda-roupa inteiro por medida, do dia para a noite, por tuta e meia, for um dos pontos altos da vossa visita ao Vietname, então Hoi An é a vossa cidade. Escolha não faltará; a única dificuldade será, talvez, diferenciar umas lojas das outras, no meio de uma multidão de similitude.

Para mim, a cidade tem aquela nota tristonha dos lugares do Sudeste Asiático que decidiram apontar todas as suas baterias em direcção à indústria turística. O que não quer dizer que me tenha sentido absolutamente impedida de apreciar os dias que lá passei. Para usar uma expressão que vai sendo lugar comum nos foruns virtuais dedicados a esta parte da Ásia, Hoi An não será necessariamente o Vietname "real", mas tem as suas virtudes. Sobretudo se, quando chegarem ao epicentro turístico da cidade, estiverem dispostos a dar meia volta e caminhar na direcção oposta.

Eis o que prefiro recordar quando recordo Hoi An:
  • O caminho menos percorrido em direcção à cidade. Se, como eu, vierem de Hue, a forma mais simples e porventura barata de chegarem a Hoi An será por autocarro na via rápida. Essa é, também, a forma menos pitoresca de fazer o percurso. Para um cheirinho de aventura e um cenário natural de encher o olho - mesmo num dia invernoso - apanhem o comboio até Danang e daí transfiram as vossas pessoas e bagagens para o autocarro local de Danang para Hoi An. Para além de bonitas vistas da orla costeira do Vietname, terão uma grande oportunidade de meterem conversa com locais. E, no autocarro, poderão testar a vossa capacidade de regateio ao comprarem o bilhete a bordo. Na altura em que eu apanhei o transporte, o preço pedido aos turistas ia em cinquenta dong, sendo o preço para locais algo entre dezoito e vinte e dois. Devo dizer-vos que regatear não está sequer remotamente nos meus genes. Mas se alguma coisa aprendi a tentar fazê-lo foi que grande parte passa por usar de uma firmeza tranquila, sempre sorridente, e nunca encostar o interlocutor à parede. Nem todos concordam neste ponto, mas eu pertenço ao campo dos que acreditam que é justo que os turistas paguem um pouco mais que os locais por bens e serviços nestes países.
Nunca um verde-cinza pareceu tão belo
Viajando ao lado de uma simpática
jovem  vietnamita
  • Um passeio de bicicleta junto à costa, num dia de inverno. Não terão uma praia em sentido próprio, mas terão o areal deserto e as palmeiras poeticamente ondulantes só para vós. No dia em que me aventurei no percurso o mar estava cinzento de núvens e branco de espuma, contando-me histórias de tempestadas magníficas na segurança da terra firme. Pedalei ao abandono, até a estrada se tornar mais ampla e os edifícios esparsos. Um recinto festivo, onde se celebrava um casamento, atraiu-me finalmente para longe da costa. Seguindo os meandros de ruelas enlameadas, entrei por uma aldeia piscatória dentro, espreitando os seus recantos e casas simples. Quando encostei a bicicleta a um muro, para descansar e para me situar, uma senhora meteu conversa comigo através da rede que delimitava o pátio da sua casa. À saída, demorei um bom bocado até encontrar o caminho de volta para a beira-mar. E então andei perdida, no melhor sentido termo.
Praia de inverno. Tenho dito!
Pedalando sem mapa nem norte numa
aldeia de pescadores
  • Uma refeição nocturna no mercado local. Numa noite de chuva irritantemente imparável fui conduzida pela A. - uma amiga argentina feita ainda em Hue - aos bancos e mesas despojados do mercado local, que àquela hora funcionava já a menos de meio gás. A comida era a que sobrara do dia, mas nem por isso menos gostosa. Um pouco disto, se faz favor. E um pouco daquilo, também. Peixe, ovos, arroz, legumes, uma montanha criada no prato, e nunca comida requentada me soube tão bem. Sem luxos, nem esforços de higiene particulares, mas tudo perfeito, assim. Tão perfeito que lá voltei mais uma vez, desta vez levando um amoroso casal chileno com quem travara amizade no autocarro para a cidade.
Quem precisa de ementa quando apontar o
dedo basta...
  • Um almoço inesperado à beira da estrada. Ziguezagueando pelas ruas de bicicleta, passei por acaso junto a uma baquinha ocupada apenas por locais, recheada de comida com ar apetitoso e gerida por três simpáticas senhoras a quem, por gestos e desenhos, sinalizei que não queria carne. Elas primeiro estranharam a minha presença e depois sorriram que sim. Acomodada num banquinho rente ao chão, como parecem ser todos os banquinhos por estas paragens, ataquei vorazmente a minha porção generosa de massa de arroz achatada, vegetais, ervas aromáticas e, como não podia deixar de ser, umas boas litradas do adocicado mas picante molho que reluzia à minha frente dentro de um frasco. Hesitar para quê? Foi tão bom que antes de partir da cidade fiz questão de lá voltar para mais uma refeição deliciosa e um retrato.
    Delícias do Vietname
    Mulheres de negócios

  • Uma visita guiada aos templos de My Son. A primeira coisa que me ensinaram foi a dizer "mi-san" e não "mai-san". O nome, explicou o entusiástico guia, nada tem que ver com pais e filhos; significa "bela montanha" e o seu porquê torna-se evidente ao olhar para a linha do horizonte. Corei pela minha ignorância ao ter americanizado um nome local. My Son é um complexo de templos hindus dedicados ao culto de Shiva, construídos entre os sécs. IV e XIII pelos reis do reino Champa. As exactas técnicas de construção utilizadas são, ainda hoje, um mistério, nomeadamente no que respeita à forma pela qual os tijolos foram unidos e à razão pela qual as paredes originais não decaem nem ganham musgo, ao contrário do que sucedeu com as paredes acrescentadas posteriormente. Mas nem só o engenho humano precoce espanta e esmaga neste local. Visitar My Son é, também, enfrentar as cicatrizes deixadas pela guerra neste país. Num esforço para derrotar as forças do Viet Cong, os americanos bombardearam pesadamente o local, o que significa que, infelizmente, muitas das estruturas se encontram gravemente danificadas e algumas foram mesmo destruídas por completo. Um aspecto que o guia sublinha uma e outra vez, levando-nos de cratera em cratera e apresentando-nos a um impressionante exemplar de bomba - há muito desactivada - recolhido neste local.
My Son
O engenho humano no seu melhor e pior
Complexo de templos dedicados a Shiva

domingo, 18 de maio de 2014

Um banh nam à chuva

Chuva. Acima de tudo, recordo-me da chuva. Teimosa, escura, inescapável. O que, no caso, não é necessariamente defeito. Na Cidadela de Hue há uma decrepitude majestosa que combina bem com um céu plúmbeo. 

Não digo que tenha sido fácil palminhar quilómetros ensarilhada num poncho de plástico e de botas ocasionalmente enterradas na lama, mas qualquer coisa no ambiente deste lugar parece exigir um clima severo para atingir a plenitude.

Talvez seja a noção do tempo que passa, levando consigo o vigor de todas glórias humanas, mesmo as mais magníficas.

Dentro do seu perímetro, o complexo da Cidadela alberga o que os anos e a fúria dos homens entenderam deixar à posteridade: ruínas da fortaleza e palácio onde, no século XIX, o imperador Gia Long, primeiro da dinastia Nguyen, instalou a sede do seu governo imperial. Hue conhecia, nesta altura, o seu momento histórico de glória enquanto capital do Vietname unificado.



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Porém, a minha primeira introdução à cidade não foi a poesia da chuva sobre os edifícios dilacerados da Cidadela de Hue, mas uns muito mais prosaicos banh nam de camarão.

Os banh nam são uma espécie de bolinhos de farinha de arroz achatados, cozidos ao vapor e servidos dentro de folhas de bananeira, no caso com pedacinhos de camarão cozido e um molho como só os vietnamitas sabem fazer.

Num inglês vagamente enviesado, a ementa garantia um paladar muito agradável, ideal para viajantes que não se sentissem a cem por cento. Nada de muito longe da verdade. Tendo acabado de chegar à cidade depois de catorze horas no autocarro nocturno vindo de Hanoi, o meu estômago certamente aceitou com agrado esta espécie de "comfort food" do Vietname


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Se há coisa que me agrada são surpresas semeadas no meio das cidades. Artistas ao virar da esquina. Moedas achadas entre as falhas do empedrado. Arquitectura invulgar. Arte nas ruas. 

E só por isso, Hue já mereceria destaque no meu caderninho invisível de notas mentais onde vou guardando memórias de viagem para referência futura.

Nas extensões ajardinadas que se alongam em cada uma das margens do rio Perfume fui descobrir um ajuntamento de esculturas silenciosas que ninguém, salvo uma outra turista esquiva com quem por fim consegui meter conversa, parecia ter notado.




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No meu hostel fico a partilhar dormitório misto com cerca de uma dezena de viajantes. Entre eles um octagenário com quem meto ocasionalmente conversa quando nos encontramos pelos corredores ou na sala de estar. Caminha vagarosamente, apoiado numa bengala, mas isso não o parece deter. Nem isso nem a chuva.

Certa vez regresso ao quarto a meio do dia e encontro-o sentado no sofá, reclinado sobre a mesa baixa onde dispôs alguns igredientes para o almoço. A conversa desponta. Ele conta-me que aos sessenta anos, com os deveres da vida de um homem cumpridos, decidiu que queria ver o mundo antes de morrer. E assim começou a sua saga de viajante.

Nesta manhã, precisamente, tinha corrido meia cidade para comprar o bilhete de autocarro para o destino seguinte. Perguntei-lhe porque não fizera uso dos serviços da recepção.

Já não tem muitos anos de sobra, responde-me sem ponta de auto-comiseração. Por isso quer andar o mais possível e fazer tudo por si mesmo.

Sorrio em concordância e, no mais secreto da alma, envergonho-me dos meus momentos de preguiça lamurienta.

domingo, 4 de maio de 2014

A baía onde desceu o dragão

Situada a 165 km de Hanoi, na província de Quang Ninh, a Baía de Ha Long é daqueles marcos turísticos que dispensa apresentações e vale bem a visita. Digam-vos o que disserem, que está sobreexplorada, que está suja, que é sobrevaloriza, deixem dizer... e vão visitar na mesma. Com o seu mais de milhar e meio de ilhotas de rocha calcária emergindo das calmíssimas águas azul-esverdeado, Ha Long Bay - a baía onde, reza a lenda, dragões desceram para ajudarem os vietnamitas a combater os invasores vindos do norte por via marítima - continua a ser uma bela obra da natureza.

Apesar de ser possível realizar a visita de forma independente, no caso optei, como a maior parte das pessoas parece fazer, por um cruzeiro organizado por uma agência. Regra geral, a oferta é de cruzeiros de um dia ou de uma e duas noites, que incluem alojamento e alimentação a bordo e actividades dinamizadas pela tripulação. Dito isto, a escolha de agências e barcos é estonteante: há-os para todos os gostos e orçamentos.

O conselho que, neste particular, corre entre viajantes revelou-se avisado: regra geral tens aquilo por que pagas, ou seja, as opções mais baratinhas de todas escondem, não raro, vários dissabores que conseguem acabar com o entusiasmo do visitante mais bem disposto.

Depois de muita meditação, optei por seguir o conselho de uma colega de quarto e investir uns dolares extra no cruzeiro de uma noite organizado pela agência Vega Travel. E não me arrependi. Aí encontrei uma tripulação amável e um tranquilo mas simpático grupo de viajantes composto por vários casais, uma mãe e uma filha e uma outra viajante a solo.

Durante dois dias vogámos por águas serenas nas baías de Ha Long e Bai Tu Long, envoltos em surtos de rocha escarpada pintalgada de verde a que, por vezes, os locais deram nome em função da sua forma. Cão. Galos que lutam. Casal. E assim por diante. Seguimos o sol no seu subir e descer amarelo. Rondámos aldeias piscatórias flutuantes e vimos aparecer barquinhos com vendedores esperançosos. Visitámos uma enorme caverna, digna de histórias das mil e uma noites, subimos a uma montanha para apreciar a vista lá do alto, descansámos na praia. E, apesar do frio e de um primeiro dia bastante nublado ninguém se recusou a uma pequena aventura em kayak, mais exigente do que à primeira vista se poderia supor. À hora das refeições, os pratos somaram-se, intermináveis, de fazer crescer água na boca, prontos a agradar a todas as sensibilidades, das mais carnívoras à mais vegetarianas. E no conforto de cabines aquecidas e com duche privativo - imagine-se! - resvalámos para um sono tranquilo, ancorados numa lagoa. A meio da noite, despertada por um ruído sem nome, servi de testemunha silenciosa a uma lua de prata entretida a redecorar a baía, depositando gentilmente a sua luz sobre águas e embarcações adormecidas.

Um lar flutuante
Lagartando no convés
Pôr do sol na baía
Vista da montanha Titop
Descansando na praia
A caverna Sung Sot, ou Caverna Surpresa
Estalagmites, estalactites e outras ites
maravilhosas
Luta de galos